Foi parar numa favela perto do Morumbi, onde a prima tinha um barraco e emprego numa daquelas mansões que se avistava de cima do morro e ali se ajeitaram uns tempos. Aceitou fazer serviços de faxina indicada pela prima, colocou o menino pequeno numa creche e Wagner entrou para a escola. Mas a grande mestra de dele foi a vida na favela. Viu de tudo, aprendeu o que devia e o que não devia, mas não se desviou para o tráfico de drogas como os outros meninos, porque tinha uma mãe severa e atenta e o cinto dançava em suas costas se fizesse besteira. O único desvio foi servir de pombo-correio levando e trazendo mensagens que lhe rendeu um bom dinheirinho. Mas logo que soube a mãe o tirou disso, foi morar num barraco mais distante e arranjou outro homem, que os protegeu por algum tempo.
E ela tratou de encaminhá-lo para pequenos serviços nas casas em que trabalhava. Ele regava jardins, tratava das plantas, lavava carros, engraxava sapatos e de biscates em biscates, acabou sabendo de tudo um pouco. De estudo, só conseguiu terminar a quarta série, suficiente para se virar no mundo e não passar por bobo.
Já rapaz, se enrabichou por uma mulher mais velha e bem esperta, que tirou dele o que podia e ainda o deixou à mercê de um marido truculento e vingativo que quase o matou de pancadas. Foi obrigado a fugir com a roupa do corpo, e amigos o levaram para a rodoviária, com um dinheirinho dado pela mãe e uma sacolinha com seus poucos pertences. O Ônibus ia para o Rio de Janeiro. Ele tinha indicação de serviço num edifício no bairro da Tijuca, onde ele chegou gastando os últimos trocados num táxi.
Conseguiu trabalho e uma vaga num quartinho de um conterrâneo. Era um rapaz de boa figura, falante e sedutor, parecendo de família fina, e acabou se metendo em diversas aventuras, nem todas com final feliz. Numa delas, mais uma vez, teve que fugir correndo, devido à fúria de um marido enganado. Outro emprego perdido. Ainda não tinha se dado conta que sua fraqueza era o fascínio que as mulheres exerciam sobre ele.
Resolveu tentar Copacabana. Logo arranjou trabalho, porque era habilidoso, educado e não rejeitava serviço. De serviços pequenos aqui e ali, como tinha facilidade de fazer amigos, foi lembrado para trabalhar num edifício de luxo, de frente para o mar, como faxineiro do prédio.
Deslumbramento total. Nunca tinha visto tanta mulher bonita, de biquíni, bronzeadas, naquele bamboleio de botar um homem doido. Era como tirar doce de criança, confessou a um amigo. Mas resolveu evitar mulher casada, que era quem mais o assediava, porque já estava cansado de correr para lá e para cá, perdendo emprego e tendo que recomeçar a vida. Resolveu maneirar; já tinha 35 anos, queria um bom emprego,, se fixar em algum lugar e planejar sua vida. Sonhava buscar sua mãe e irmão e constituir família, ter sua casa e seus filhos.
Trabalhava muito bem, sempre solícito e respeitoso, era muito habilidoso e como tinha algum estudo, rapidamente passou a zelador. Com isso, teve direito a um apartamento pequeno e jeitoso no edifício, tíquete refeição, carteira assinada, convênio médico. Um bom salário que servia também para compensar os aborrecimentos do cargo: condôminos sem educação que o chamavam na madrugada para abrir portão, bêbados que precisavam ser carregados, jovens que faziam barulho e outras reclamações nunca imaginadas por ele, partindo de pessoas com posses. “Dinheiro não é tudo, pensava. Lá na favela as pessoas tinham mais consideração umas com as outras”.
Mas é a vida – filosofava – enquanto olhava com o rabo do olho para a morena do quinto andar que sempre piscava para ele, ou para a madame cheia de jóias que lhe pedia discrição quando entrava com um homem que não era o marido. Praticamente ele conhecia todos que moravam ali, com seus segredos e pecados, suas mazelas e até alegrias. As duas mulheres solitárias que dividiam o apartamento do nono andar e viviam brigando por besteiras e lhe chamando como árbitro de suas desavenças. Uma viúva já velhinha que passeava no jardim com seu cachorrinho e sempre pedia sua opinião sobre qualquer coisa ou parava para lhe contar a última gracinha de seu bichinho. Um senhor estrangeiro que falava arrevezado e sempre querendo saber se ia chover ou não. Um casal ainda novo que só abria a boca para reclamar: o elevador que estava sujo, o som alto do vizinho, a impertinência do garoto do primeiro andar. A todos ele atendia com a tolerância e sabedoria que a vida tinha lhe ensinado, sem perder seu bom humor. Percebia bem a solidão dos que viviam sozinhos e se sentiam sós, pois lhe interfonavam toda hora ou lhe dirigiam a palavra por qualquer bobagem, mas era, sabia ele, para amenizar a solidão, saber-se escutado.
Uma noite ele estava cobrindo a folga do porteiro e observou a viuvinha do sexto andar chegar com um rapaz e lhe pedir para abrir o portão porque havia esquecido seu controle remoto. Era contra as normas do edifício. Ela era uma moça de uns 30 anos, bonita e elegante, que trabalhava fora e se mantinha sem ajuda de homem. Ele sempre a admirava muito e também a desejava, mas não tencionava fazer a besteira de a cortejar e acabar perdendo toda aquela regalia. Naquele momento, no entanto, como era observador, sentiu aflição nos seus olhos. O que estaria havendo? Quem era aquele sujeito mal encarado a seu lado?
A contragosto ele abriu o portão, mas ficou na cabine observando o comportamento do acompanhante da moça.
Achou um tipo suspeito e grosseiro e resolveu verificar. Pediu ao segurança para ficar um pouco na portaria enquanto ele seguia o casal. Sabia que ela morava no terceiro andar, subiu pelas escadas e chegou antes deles. Escondido na porta que dava para a escada, observou-os sair do elevador e percebeu que o homem tinha algo encostado na costela da moça e obrigou-a a abrir o apartamento e entraram. Neste meio tempo, Wagner resolveu chamar a polícia pelo celular. Aquele sujeito era claramente um malfeitor, um assaltante ou algo pior. Não ia esperar a polícia chegar. Não tinha nenhum plano ainda na cabeça, mas conhecia o crime e os malfeitores e já tinha escapado de muitas pela rapidez de raciocínio e capacidade de se sair bem em situações difíceis.
Havia um interfone em cada andar, no hall das escadas. Resolveu ligar para o apartamento de moça. Precisou tocar muitas vezes até alguém responder. Respondeu uma voz de homem, impaciente e grosseiro:
- Quem é, a esta hora?
- É o porteiro, senhor. Tem uma encomenda para d.Lúcia aqui na portaria e só entregam se ela mesma vier receber. Ela pode atender?
- Encomenda? A esta hora? – respondeu o homem já irado – não estamos esperando nada. Mande o homem embora e não nos amole mais.
- Senhor, o homem insiste para d. Lúcia vir receber. Parece coisa do estrangeiro, pelo selo e carimbos. Coisa importante, de valor. Ele diz que vai armar o maior escândalo se d. Lúcia não vier logo. Será que ela sabe do que se trata?
- A moça já disse que não sabe o que é. Mande o entregador ir embora e não nos aborreça mais senão chamo a polícia.
- Já foi chamada a polícia senhor, porque ele está aos gritos aqui embaixo, completamente fora de si e os condôminos começaram a reclamar.
- Polícia, é? – Wagner sentiu o homem hesitar um pouco. - Pois diga a polícia para prender este cretino que está perturbando a ordem. Não é para isso que ela serve?
- Tem razão senhor, mas sabe como a polícia é. Vai querer falar com d.Lúcia. A encomenda é para ela. Ela não poderia vir aqui embaixo para resolvermos isso?
- Ora, vá para aquele lugar, seu incompetente. Não temos nada a ver com isso, muito menos com um maluco que resolve encher o saco dos outros a esta hora da noite. E não me interfone mais!
- Bem, a polícia está subindo, senhor. O senhor se entende com ela aí.
Wagner sentiu o interfone ser desligado com fúria e ficou esperando que o homem abrisse a porta e tentasse fugir pela escada, exatamente onde ele estava, perto do interfone. Ouviu a porta se abrindo e o ruído de pés apressados no hall. Logo a porta do hall da escada abriu-se e Wagner fechou-a sobre ele, fazendo-o despencar pela escada.
Surpreso, o homem foi rolando aos berros, e deixou a arma cair num degrau. Wagner pegou-a rapidamente e rendeu o sujeito, que estava meio inconsciente, no primeiro patamar. Ligou pelo seu celular para a portaria, avisando que tinha chamado a polícia e estava no terceiro andar com o suspeito. D. Lúcia abriu a porta do apartamento e foi até à escada para ver o que tinha ocorrido, tentando tirar uma fita crepe da boca. Começou a chorar ao ver Wagner com a arma apontada para o bandido, machucado e furioso, sentado no patamar, sem saber bem porque estava ali, rendido com seu próprio revolver, por aquele nordestino debochado.
- Ele entrou no meu carro no sinal da pracinha e me fez entrar no prédio, sr. Wagner. Ainda bem que o senhor percebeu que tinha alguma coisa errada. Este cara trabalha na quitanda e sempre está me dando cantadas grosseiras. Não sei o que ele queria, se roubar ou me estuprar. Quando o senhor interfonou eu disse para ele que se eu não atendesse, o senhor ia subir para ver o que tinha ocorrido. Graças a Deus o senhor chegou a tempo: ele me colocou esta fita na boca e me jogou no sofá. Nem sei o que podia ter ocorrido. O senhor chamou mesmo a polícia?
-Chamei sim, quando vi vocês dois saindo do elevador e ele parecia ter uma arma na sua costela.
- Era uma arma mesmo. Céus, o homem é louco mesmo... Ah, obrigada, Wagner, você salvou minha vida - e d. Lúcia, chorosa, abraçou-se com Wagner.
- Ai meu Deus – pensou ele – Que cabelo cheiroso. Que bom que não tem marido e é tão gostosa... Parece tão carente e frágil...Ai, meu Deus, vai começar tudo outra vez....