A FADA E O PRÍNCIPE
Suzana da Cunha Lima
Fui remexer as velharias do sótão de mamãe e a alergia bateu forte, espirrava
sem parar. Olhos lacrimejando, me sentindo péssima com toda aquele poeira, um
cheiro de um passado onde não houve glórias, nem medalhas, só cacarecos e
objetos destroçados, carcomidos pelo tempo e falta de uso.
Mas minha filha queria algo dos anos 40, para a Festa do Passado que ia haver
na Escola e não houve jeito. Precisei enfrentar os fantasmas e os macaquinhos
que teimam em se abrigar nos sótãos empoeirados de qualquer família.
Ela foi comigo e estava se divertindo muito retirando coisas e mais coisas do
velho baú que não conseguia identificar com seus conhecimentos de um mundo tão
simples, limpinho e funcional como o seu.
- E isto, o que é, mãe? E aquilo? E toca a rir e debochar daquelas saias
rodadas, as anquinhas e corpetes, os xales e luvas e os objetos de toucador,
outrora de porcelana e agora já lascados e riscados, sem sua beleza anterior.
Afinal achamos uma saia e um xale ainda apresentáveis e que poderiam vestir
uma sinhazinha daquele tempo. – Era da bisa Simone, mamãe? Bem que diziam que
as francesas eram elegantes... Que corpinho ela tinha, heim? Meu biso não era
bobo não...Agora é só levar para a lavanderia que vai ficar ótimo. Posso usar
com sua blusa de seda branca!!! E desceu voando a escada já com a mão no
celular para avisar as amigas do achado.
Fiquei para arrumar aquela bagunça toda e, de repente, encontrei uma caixa de
sapatos bem fechada com barbante. Abri, curiosa e me deparei com um maço de
cartas amarradas com uma fita de chamalote rosa, bem desbotada. As cartas
estavam em bom estado e picou-me a curiosidade. Quem as teria escrito?
Saí do sótão aos espirros, e me encaminhei para a varanda, com o maço na mão.
Ali, na quietude de uma tarde se despedindo, desamarrei o pacote e fui
pegando as cartas, aleatoriamente, querendo saber quem as tinha mandado e para
quem e principalmente, de que se tratava.
Praticamente todas as que consegui ler, naquela hora, se reportavam às preocupações
normais de uma família, em que o pai viaja muito, tem um filho malandro que não
quer estudar, negócios que devem ser atendidos etc, compromissos sociais e outras
coisinhas. Tudo corriqueiro e sem graça, a não ser pelo tom cerimonioso que se
usava então, mesmo entre marido e mulher. Alguns nomes ainda me pareceram
familiares, mas, de modo geral, não havia nada de excitante e sensacional
nelas, nenhum segredo misterioso, quem sabe um crime? Por que então estavam tão
bem embaladas? Que serventia teriam agora? Não valia meu tempo nem a poeira
que eu aspirara. Foi quando notei um saquinho de seda amarrado com uma fita de
veludo, bem escondido no meio delas.
Meu interesse despertou outra vez, e excitada, desamarrei o laço de veludo
comecei a tirar uma carta por vez, para ler, preocupada em não rasgar o fino
papel de seda em que tinham sido escritas. Percebi que era uma correspondência
amorosa, entre um homem que se assinava Príncipe e uma mulher , Fada. Portanto,
só podia ser um amor proibido, já que nem os próprios nomes colocavam. Seriam
casados com outras pessoas? O Príncipe teria engravidado a Fada e sumira? Quem
seriam a Fada e o Príncipe?
Li sofregamente quase todas, até o sol desaparecer e aí entrei na casa, com as
cartas na mão, pensando naquele sentimento tão grande que havia se perdido nas
brumas do tempo e, com certeza, despedaçado dois corações. Mas quem machucara
quem? O que acontecera com a vida destas pessoas?
Comecei a matutar a respeito,
rememorando as histórias de minha família, sempre contadas, recontadas e aumentadas
pela minha avó, a fiel depositária da memória familiar.
Tentei reler as cartas outra vez, buscando uma pista qualquer e reparei em uma,
que eu não tinha lido ainda. Chamou-me a atenção o papel cor de rosa decorado
com pequenas pinturas feitas a bico de tinta, um trabalho artesanal muito
bonito. A letra da mulher denunciava pessoa de classe alta, culta e pareceu-me,
muito decidida.
Era a da amante, claro. Esposa naquele tempo não assinava com apelidos.
O teor da carta confirmou a imagem que estava montando daquela mulher;
alguém que se sabia poderosa.
Meu amado Príncipe
Chegou a hora da verdade. Temos que fazer uma escolha e sei que não será fácil
para ninguém. A verdade é que não somos livres. Temos uma família construída
antes de nos conhecermos. E se a paixão tomou conta de nossas vidas com toda
sua força destruidora e possessiva, agora cabe a nós dar um rumo certo para
este sentimento. Não há segredo que perdure nem mentira que não se revele. E
agora sua mulher descobriu tudo, quase na hora de embarcarmos para a Europa;
passagens compradas, malas feitas e a vontade louca de iniciar uma vida nova em
minha terra natal. Que fazer? É o destino.
Não se lamente, meu amado, meu
querido homem. Quem ia garantir que seríamos felizes na França, deixando tantas
mágoas e rancores para trás e levando conosco a velha culpa e remorso que ia
acabar contaminando todo o nosso belo sentimento?
Vamos colocar as cartas na mesa. Sua mulher e eu tivemos uma conversa séria,
adulta e pode até se espantar, civilizada. Ambas percebemos que não
adianta lutar uma contra a outra, deixando você encostado na parede. Não foi
uma conversa fácil, claro, mas após a explosão das emoções e sentimentos não
compreendidos, chegamos a uma decisão.
Você é o homem que amamos, mas nós não o dividiremos uma com a outra nem com
ninguém mais. Portanto, cabe a você a decisão. Você escolhe com quem quer
ficar. A outra aceita a decisão e desaparece de sua vida para sempre.
Sua Fada, hoje e sempre e para sempre.
Fiquei pensando. Qual delas o Príncipe escolheu? Pelo visto a amante era
bem mais resolvida do que a mulher, mas, afinal, quem tinha a posição e os
direitos era a esposa.
Situação difícil. Comecei a rememorar conversas antigas, velhas histórias,
quase lendas, repetidas em voz baixa e que se calavam à proximidade de nós,
crianças. Em que tempo isso se passou? Seriam meus avós maternos ou
paternos? Ou se reportavam a tias ou tios que eu nem chegara a conhecer, algum
membro distante da família ? Era da geração de meus bisavós, com certeza, tempo
de preconceitos, tabus, costumes severos. Mas quem, meu Deus, quem eram a
Fada e o Príncipe?
Tentava desesperadamente me recordar enquanto ia dobrando aqueles finos papéis
de seda colocando-os cuidadosamente em seus envelopes, quando lembrei de
ter visto uma espécie de relógio que os homens usavam, tipo cebolão, já sem
ponteiros, todo manchado, que estava guardado no baú, junto com as outras quinquilharias.
Subi correndo e abri o baú outra vez, procurando o tal cebolão.
Abri-o, tinha dentro apenas uma foto manchada.
Descolei a foto para ver
se havia algo escrito atrás e um pedacinho de papel dobrado, meio
manchado, surgiu quando o desdobrei, e lá estava escrito:
Mariana, para sempre;
Fui buscar lá no fundo da memória quem seria esta Mariana. Céus, era a
primeira mulher de meu biso. Tinham ido viajar para a Europa e quando voltaram,
meu biso trouxe uma francesa, a Simone, com quem tinha se casado, que encantou
a todos por sua beleza e elegância. De Mariana, soube-se que pegara a tal
influenza, ou gripe espanhola e morrera.
Esta história foi muito comentada, a seu tempo, pois ele cremara a esposa por
lá mesmo, visto se tratar de uma doença facilmente propagável. Verdade?
Mentira?
E logo meu cérebro se abriu! A amante tinha sido a escolhida e a esposa sumira,
conforme o acordo. Simone era a Fada.
A fada tinha sido a eleita, mas o Príncipe jamais esquecera sua verdadeira
Rainha.