A
doida
Carlos Drummond de Andrade
(In: Contos de Aprendiz.)
A doida habitava um chalé
no centro do jardim maltratado. E a rua descia para o córrego, onde os meninos
costumavam banhar-se. Era só aquele chalezinho, à esquerda, entre o barranco e
um chão abandonado; à direita, o muro de um grande quintal. E na rua, tornada
maior pelo silêncio, o burro pastava. Rua cheia de capim, pedras soltas, num
declive áspero. Onde estava o fiscal, que não mandava capiná-la?
Os três garotos desceram
manhã cedo, para o banho e a pega de passarinho. Só com essa intenção. Mas era
bom passar pela casa da doida e provocá-la.
As mães diziam o
contrário: que era horroroso, poucos pecados seriam maiores.
Dos doidos devemos ter
piedade, porque eles não gozam dos benefícios com que nós, os sãos, fomos
aquinhoados.
Não explicavam bem quais
fossem esses benefícios, ou explicavam demais, e restava a impressão de que
eram todos privilégios de gente adulta, como fazer visitas, receber cartas,
entrar para irmandade. E isso não comovia ninguém. A loucura parecia antes erro
do que miséria. E os três sentiam-se inclinados a lapidar a doida, isolada e
agreste no seu jardim. Como era mesmo a cara da doida, poucos poderiam dizê-lo.
Não aparecia de frente e de corpo inteiro, como as outras pessoas, conversando
na calma. Só o busto, recortado, numa das janelas da frente, as mãos magras, ameaçando.
Os cabelos, brancos e desgrenhados. E a boca inflamada, soltando xingamentos,
pragas, numa voz rouca.
Eram palavras da Bíblia
misturadas a termos populares, dos quais alguns pareciam escabrosos, e todos
fortíssimos na sua cólera.
Sabia-se confusamente que
a doida tinha sido moça igual às outras no seu tempo remoto (contava mais de 60
anos, e loucura e idade, juntas, lhe lavravam o corpo). Corria, com variantes,
a história de que fora noiva de um fazendeiro, e o casamento, uma festa
estrondosa; mas na própria noite de núpcias o homem a repudiara, Deus sabe por
que razão. O marido ergueu-se terrível e empurrou-a, no calor do bate-boca; ela
rolou escada abaixo, foi quebrando ossos, arrebentando-se. Os dois nunca mais
se viram. Já outros contavam que o pai, não o marido, a expulsara, e
esclareciam que certa manhã o velho sentira um amargo diferente no café, ele
que tinha dinheiro grosso e estava custando a morrer – mas nos racontos antigos
abusava-se de veneno. De qualquer modo, as pessoas grandes não contavam a
história direito, e os meninos deformavam o conto. Repudiada por todos, ela se
fechou naquele chalé do caminho do córrego, e acabou perdendo o juízo. Perdera
antes todas as relações. Ninguém tinha ânimo de visitá-la. O padeiro mal jogava
o pão na caixa de madeira, à entrada, e eclipsava-se. Diziam que nessa caixa
uns primos generosos mandavam pôr, à noite, provisões e roupas, embora
oficialmente a ruptura com a família se mantivesse inalterável. Às vezes uma
preta velha arriscava-se a entrar, com seu cachimbo e sua paciência educada no
cativeiro, e lá ficava dois ou três meses, cozinhando. Por fim a doida
enxotava-a. E, afinal, empregada nenhuma queria servi-la. Ir viver com a doida,
pedir a bênção à doida, jantar em casa da doida, passou a ser, na cidade,
expressões de castigo e símbolos de irrisão.
Vinte anos de tal
existência, e a legenda está feita. Quarenta, e não há mudá-la. O sentimento de
que a doida carregava uma culpa, que sua própria doidice era uma falta grave,
uma coisa aberrante, instalou-se no espírito das crianças. E assim, gerações
sucessivas de moleques passavam pela porta, fixavam cuidadosamente a vidraça e
lascavam uma pedra. A princípio, como justa penalidade. Depois, por prazer.
Finalmente, e já havia muito tempo, por hábito. Como a doida respondesse sempre
furiosa, criara-se na mente infantil a idéia de um equilíbrio por compensação,
que afogava o remorso.
Em vão os pais censuravam
tal procedimento. Quando meninos, os pais daqueles três tinham feito o mesmo,
com relação à mesma doida, ou a outras. Pessoas sensíveis lamentavam o fato,
sugeriam que se desse um jeito para internar a doida. Mas como? O hospício era
longe, os parentes não se interessavam. E daí – explicava-se ao forasteiro que
porventura estranhasse a situação – toda cidade tem seus doidos; quase que toda
família os tem. Quando se tornam ferozes, são trancados no sótão; fora disto,
circulam pacificamente pelas ruas, se querem fazê-lo, ou não, se preferem ficar
em casa. E doido é quem Deus quis que ficasse doido... Respeitemos sua vontade.
Não há remédio para
loucura; nunca nenhum doido se curou, que a cidade soubesse; e a cidade sabe
bastante, ao passo que livros mentem.
Os três verificaram que
quase não dava mais gosto apedrejar a casa. As vidraças partidas não se
recompunham mais. A pedra batia no caixilho ou ia aninhar-se lá dentro, para
voltar com palavras iradas. Ainda haveria louça por destruir, espelho, vaso
intato? Em todo caso, o mais velho comandou, e os outros obedeceram na forma do
sagrado costume. Pegaram calhaus lisos, de ferro, tomaram posição. Cada um
jogaria por sua vez, com intervalos para observar o resultado. O chefe
reservou-se um objetivo ambicioso: a chaminé.
O projétil bateu no canudo
de folha-de-flandres enegrecido – blem – e veio espatifar uma telha, com
estrondo. Um bem-te-vi assustado fugiu da mangueira próxima. A doida, porém,
parecia não ter percebido a agressão, a casa não reagia. Então o do meio vibrou
um golpe na primeira janela. Bam! Tinha atingido uma lata, e a onda de som
propagou-se lá dentro; o menino sentiu-se recompensado. Esperaram um pouco,
para ouvir os gritos. As paredes descascadas, sob as trepadeiras e a hera da
grade, as janelas abertas e vazias, o jardim de cravo e mato, era tudo a mesma
paz.
Aí o terceiro do grupo, em
seus 11 anos, sentiu-se cheio de coragem e resolveu invadir o jardim. Não só
podia atirar mais de perto na outra janela, como até, praticar outras e maiores
façanhas. Os companheiros, desapontados com a falta do espetáculo cotidiano,
não, queriam segui-lo. E o chefe, fazendo valer sua autoridade, tinha pressa em
chegar ao campo.
O garoto empurrou o
portão: abriu-se. Então, não vivia trancado? ...E ninguém ainda fizera a experiência.
Era o primeiro a penetrar no jardim, e pisava firme, posto que cauteloso. Os
amigos chamavam-no, impacientes. Mas entrar em terreno proibido é tão excitante
que o apelo perdia toda a significação. Pisar um chão pela primeira vez; e chão
inimigo. Curioso como o jardim se parecia com qualquer um; apenas era mais
selvagem, e o melão-de-são-caetano se enredava entre as violetas, as roseiras
pediam poda, o canteiro de cravinas afogava-se em erva.
Lá estava, quentando sol,
a mesma lagartixa de todos os jardins, cabecinha móbil e suspicaz. O menino
pensou primeiro em matar a lagartixa e depois em atacar a janela. Chegou perto
do animal, que correu. Na perseguição, foi parar rente do chalé, junto à
cancelinha azul (tinha sido azul) que fechava a varanda da frente. Era um ponto
que não se via da rua, coberto como estava pela massa de folha gemo A cancela
apodrecera, o soalho da varanda tinha buracos, a parede, outrora pintada de
rosa e azul, abria-se em reboco, e no chão uma farinha de caliça denunciava o
estrago das pedras, que a louca desistira de reparar.
A lagartixa salvara-se,
metida em recantos só dela sabidos, e o garoto galgou os dois degraus, empurrou
cancela, entrou. Tinha a pedra na mão, mas já não era necessária; jogou-a fora.
Tudo tão fácil, que até ia
perdendo o senso da precaução. Recuou um pouco e olhou para a rua: os
companheiros tinham sumido. Ou estavam mesmo com muita pressa, ou queriam ver
até aonde iria a coragem dele, sozinho em casa da doida.
Tomar café com a doida.
Jantar em casa da doida. Mas estaria a doida?
A princípio não distinguiu
bem, debruçado à janela, a matéria confusa do interior. Os olhos estavam cheios
de claridade, mas afinal se acomodaram, e viu a sala, completamente vazia e
esburacada, com um corredorzinho no fundo, e no fundo do corredorzinho uma
caçarola no chão, e a pedra que o companheiro jogará.
Passou a outra janela e
viu o mesmo abandono, a mesma nudez. Mas aquele quarto dava para outro cômodo,
com a porta cerrada. Atrás da porta devia estar a doida, que inexplicavelmente
não se mexia, para enfrentar o inimigo. E o menino saltou o peitoril, pisou
indagador no soalho gretado, que cedia.
A porta dos fundos cedeu
igualmente à pressão leve, entreabrindo-se numa faixa estreita que mal dava
passagem a um corpo magro.
No outro cômodo a penumbra
era mais espessa parecia muito povoada. Difícil identificar imediatamente as
formas que ali se acumulavam. O tato descobriu uma coisa redonda e lisa, a
curva de uma cantoneira. O fio de luz coado do jardim acusou a presença de vidros
e espelhos. Seguramente cadeiras. Sobre uma mesa grande pairavam um amplo
guarda-comida, uma mesinha de toalete mais algumas cadeiras empilhadas, um
abajur de renda e várias caixas de papelão. Encostado à mesa, um piano também
soterrado sob a pilha de embrulhos e caixas. Seguia-se um guarda-roupa de
proporções majestosas, tendo ao alto dois quadros virados para a parede, um baú
e mais pacotes. Junto à única janela, olhando para o morro, e tapando pela
metade a cortina que a obscurecia, outro armário. Os móveis enganchavam-se uns
nos outros, subiam ao teto. A casa tinha se espremido ali, fugindo à
perseguição de 40 anos.
O menino foi abrindo
caminho entre pernas e braços de móveis, contorna aqui, esbarra mais adiante. O
quarto era pequeno e cabia tanta coisa.
Atrás da massa do piano,
encurralada a um canto, estava a cama. E nela, busto soerguido, a doida
esticava o rosto para a frente, na investigação do rumor insólito. Não
adiantava ao menino querer fugir ou esconder-se. E ele estava determinado a
conhecer tudo daquela casa. De resto, a doida não deu nenhum sinal de guerra.
Apenas levantou as mãos à altura dos olhos, como para protegê-los de uma
pedrada.
Ele encarava-a, com
interesse. Era simplesmente uma velha, jogada num catre preto de solteiro,
atrás de uma barricada de móveis. E que pequenininha! O corpo sob a coberta
formava uma elevação minúscula. Miúda, escura, desse sujo que o tempo deposita
na pele, manchando-a. E parecia ter medo.
Mas os dedos desceram um
pouco, e os pequenos olhos amarelados encararam por sua vez o intruso com
atenção voraz, desceram às suas mãos vazias, tornaram a subir ao rosto
infantil.
A criança sorriu, de desaponto,
sem saber o que fizesse.
Então a doida ergueu-se um
pouco mais, firmando-se nos cotovelos. A boca remexeu, deixou passar um som
vago e tímido.
Como a criança não se
movesse, o som indistinto se esboçou outra vez. Ele teve a impressão de que não
era xingamento, parecia antes um chamado. Sentiu-se atraído para a doida, e
todo desejo de maltratá-la se dissipou. Era um apelo, sim, e os dedos,
movendo-se canhestramente, o confirmavam.
O menino aproximou-se, e o
mesmo jeito da boca insistia em soltar a mesma palavra curta, que entretanto
não tomava forma. Ou seria um bater automático de queixo, produzindo um som sem
qualquer significação?
Talvez pedisse água. A
moringa estava no criado - mudo, entre vidros e papéis. Ele encheu o copo pela
metade, estendeu-o. A doida parecia aprovar com a cabeça, e suas mãos queriam
segurar sozinhas, mas foi preciso que o menino a ajudasse a beber.
Fazia tudo naturalmente, e
nem se lembrava mais por que entrara ali, nem conservava qualquer espécie de
aversão pela doida. A própria idéia de doida desaparecera. Havia no quarto uma
velha com sede, e que talvez estivesse morrendo.
Nunca vira ninguém morrer,
os pais o afastavam se havia em casa um agonizante. Mas deve ser assim que as
pessoas morrem.
Um sentimento de
responsabilidade apoderou-se dele. Desajeitadamente, procurou fazer com que a
cabeça repousasse sobre o travesseiro. Os músculos rígidos da mulher não o
ajudavam. Teve que abraçar-lhe os ombros – com repugnância – e conseguiu,
afinal, deitá-la em posição suave.
Mas a boca deixava passar
ainda o mesmo ruído obscuro, que fazia crescer as veias do pescoço,
inutilmente. Água não podia ser, talvez remédio...
Passou-lhe um a um, diante
dos olhos, os frasquinhos do criado-mudo. Sem receber qualquer sinal de
aquiescência. Ficou perplexo, irresoluto. Seria caso talvez de chamar alguém,
avisar o farmacêutico mais próximo, ou ir à procura do médico, que morava
longe. Mas hesitava em deixar a mulher sozinha na casa aberta e exposta a
pedradas. E tinha medo de que ela morresse em completo abandono, como ninguém
no mundo deve morrer, e isso ele sabia que não apenas porque sua mãe o
repetisse sempre, senão também porque muitas vezes, acordando no escuro, ficara
gelado por não sentir o calor do corpo do irmão e seu bafo protetor.
Foi tropeçando nos móveis,
arrastou com esforço o pesado armário da janela, desembaraçou a cortina, e a
luz invadiu o depósito onde a mulher morria. Com o ar fino veio uma decisão.
Não deixaria a mulher para
chamar ninguém. Sabia que não poderia fazer nada para ajudá-la, a não ser
sentar-se à beira da cama, pegar-lhe nas mãos e esperar o que ia acontecer.