(Texto criado com base em uma notícia de jornal. O texto contesta o que se diz na matéria, mostra detalhes que podem mudar a história. A ideia é de uma notícia qualquer, e a história é ficção)
O braço decepado
Suzana da Cunha Lima
Encontrei a turma no bar Veloso, no final da tarde. Era
nossa hora de relax e de fofoca, pois homem também adora uma. Ouvi que estavam conversando sobre o
atropelamento do ciclista. Resolvi intervir, porque tinha minha própria teoria,
baseada em fatos reais e não em especulação. Sentei-me, pedi minha Cerva e
interrompi a prosa.
- Gente, eu estava na Av. Paulista bem na hora daquele
lamentável acidente com o ciclista. A mídia é muito sensacionalista. Estes repórteres não observam direito o que
olham ou escutam, querem mais é ver o circo pegar fogo e o tal braço decepado é
um prato cheio. Já crucificaram o motorista e o amigo carona que estava com
ele, ainda põe mais lenha na fogueira, dizendo que tinham bebido 3 ou 4
cervejas. Está certo, é muito álcool, tem a Lei Seca, ninguém discorda disso.
Mas calma, vamos examinar os fatos direitinho.
- Examinar o quê mais, cabeça de bagre? Está tudo aí nos
jornais. O próprio motorista admitiu que atropelou o ciclista. E ele estava na ciclovia. Era só o motorista
ter observado isso.
- Calma aí, ainda não eram 7 horas, a hora que a ciclovia
abre. O acidente ocorreu às 6 horas, uma hora antes. Ainda estavam pondo os
cones.
- E daí, meu chapa? Com cone ou sem cone, havia um ciclista
trafegando, tem mais é que dirigir com cuidado, sair da faixa dele. E testemunhas contaram à polícia que o carro
estava fazendo ziguezague, prova que o motorista estava bêbado ou com seus
sentidos alterados.
- Pois saiba que não saiu nenhum laudo médico que atestasse
isso. E olhe que ele se entregou, se
fosse outro, deixava passar 48 horas para se apresentar, não pegava flagrante e
não era preso. E os policiais disseram que ele não parecia bêbado, mas
alterado, chocado com o fato.
- Tinha mais que estar, não é? Arrancou o braço do ciclista
e ainda jogou fora, como é que pode? E ainda fugiu, meu chapa!
- Pois vou contar uma
coisinha que vocês ignoram. No meu entender, este motorista estava chocado com
outra coisa. Acho que a mídia nem sabe ainda.
Só vai descobrir depois do exame de corpo delito. Vai ser uma surpresa e
tanto, como foi para mim - o pessoal no
bar começou a ficar alvoroçado.
- E que coisa é essa? Vai mudar o julgamento, a sentença? Lá
vem você com suas teorias...
- Com certeza que vai.
Eu estava ali na calçada e posso lhe dizer, que o braço do rapaz
ciclista era artificial. Uma prótese,
entenderam? Sou médico, vocês sabem, e ortopedista. Se examinarem melhor o toco, o que ficou, vão
ver cicatrizes antigas de amputação e talvez alguns restos do que prendia o
braço artificial ao corpo. Mesmo em
instantes, como eu estava perto, eu vi.
Se é o braço mesmo, os ligamentos, nervos, músculos e ossos iam oferecer muita resistência, é duro
separar um braço do corpo. Vejam aquele caso da mulher que esquartejou o marido
para colocar em mala e dar sumiço. Precisou de serra elétrica e muito tempo
para terminar o serviço. Não havia de ser uma batida de carro num ciclista que
ia realizar esta proeza. Lembram daquele suplício na Inquisição que colocavam a
vítima numa roda... – aí me interromperam entre incrédulos e nauseados com a
história, cada qual querendo demolir minha teoria do braço artificial.
- Chega deste assunto macabro, cara. Estamos aqui para desestressar - falou um. -
Vão examinar o ciclista que está no hospital e aí vai aparecer a verdade -
objetou outro. - Mas se esta tua hipótese louca é comprovada como verdade, em
que mudaria o julgamento do motorista? Ele atropelou o ciclista, ponto -
retrucou um deles.
- Atropelou, claro, mas tem atenuantes. Lembre-se que ele
parou um pouco, deve ter olhado para seu banco e visto aquele braço atrás. Ficou atordoado, claro. Depois é que fugiu. E
resolveu jogar o braço fora, já que não ia servir para nada mesmo. E qual a
razão dele não ter se livrado do flagrante? Com 48 horas ele não seria preso. Mas ele se entregou antes. Um cara bêbado não
ia raciocinar deste jeito. Garanto que
ele deve ter ficado muito impressionado com aquele braço...Aí resolveu voltar
para ver como o rapaz ficou, quem sabe pedir socorro médico.
- Nossa, você devia
dizer isso tudo para a polícia, caro.
- Já disse, inclusive para o advogado do motorista. Se ele souber usar bem esta informação não
poderão indiciá-lo por tentativa de homicídio, como estão querendo. Afinal, ele
não morreu, não é? No máximo por lesão corporal. - enchi meu copo outra vez e resolvi fazer o
assunto render mais, de uma maneira mais leve, antes que eu perdesse os amigos:
- Mas este incidente veio demonstrar cabalmente para a turma
da vida saudável que bicicleta, numa cidade como São Paulo, não serve, de
maneira alguma, como meio de transporte. E logo na Avenida Paulista! Podem
colocar um monte de ciclovias, não dá certo! Já existem muitos loucos no
volante e motoqueiros que não respeitam nada. Um mundo de gente com uma pressa
insana num trânsito caótico. Imagine se vão se preocupar com alguém indo de
bicicleta para o trabalho, arrumadinho, de pastinha de executivo. Bicicleta é para parques, bairros tranquilos
- eles se acalmaram um pouco e em segundos, começaram a discutir as
possibilidades de uso da bicicleta.
Neste ponto, acho que fui maioria, mas no caso do ciclista atropelado,
quase que me atropelam também...
E continuei a bebericar,
observando filosoficamente, como as pessoas defendem seus pontos de vida
tão aguerridamente, sem sequer escutar uma ideia diferente ou um outro ângulo
da mesma questão. Nesta hora, a verdade foge de nós como um coelhinho
assustado.
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