O anjinho despencado do céu
Hirtiz Lazarin
O anjinho Rafael era um
moleque travesso e avesso à rotina sem graça do céu. Era um tal de lavar as
vestes brancas, escovar as asas, polir o alo dourado, sem contar as maçantes
aulas de música. Não tinha vocação pra
cantar, nem pra tocar trombeta.
Resolveu fugir para a terra. Sonhava voar livre entre as árvores como se
passarinho fosse, sentir a chuva fininha no rosto, brincar na lama grossa e banhar-se na água morna do riacho.
Fechou bem firme os olhinhos e sem
rumo certo voou para uma aventura emocionante.
Só os abriu quando sentiu algo espetar seus pés descalços. Estava num canteiro florido à frente de um
prédio pequeno e modesto.
Sentou-se nos degraus da escadinha pra tomar fôlego e ajeitar as asas
tortas. Uma garota chega carregando
livros. Fixa-lhe o olhar e percebe
naquele rosto moreno e bonito um olhar tristonho e perdido no vazio. Seu coração sente que deve segui-la e os dois
entram no apartamento 21.
Tudo ali era simples e organizado.
Rafael, sem cerimônia, instalou-se
ali e em poucos dias já estava
familiarizado com a rotina da casa.
Maria Cristina vivia com a mãe D. Terezinha, uma senhora sóbria,
econômica nos gestos e nas palavras.
Saíam bem cedinho, a mãe pro trabalho e a filha pra escola. A vida ali era entediante. Tudo era sem graça, faltava diálogo, alegria
e muito... muito mais. Eram dois robôs
que partilhavam apenas a mesma moradia.
Numa segunda-feira, Maria Cristina
chega da escola e já ao abrir a porta sente um perfume suave, delicado. Sobre a mesa de jantar está um vaso branco
leitoso carregado de flores vermelhas.
Esboçou um sorriso desconfiado, deu de ombros e achou que era
"coisa" da mãe.
Abriu as janelas, a claridade entrou
acompanhada de uma brisa que balançou a cortina de tecido fininho que se
enroscou nos espinhos da flor e pétalas espalharam-se pelo chão.
A casa de móveis humildes e cores neutras
sorriu.
Num outro momento, Maria Cristina
encontrou um embrulho junto à porta. Não
havia remetente. Apenas seu nome.
Abriu com cautela... Era apenas um
CD. Colocou-o pra tocar. Ouviu-se
uma melodia suave, acompanhada pelo som de um piano. A música...Ah!
Ali faltava música.
As duas mulheres continuavam
caladas. Nada lhes tocava... Que
ressentimento era esse? Mortas para a
vida? O anjo mudou de tática.
Trapalhadas começaram a acontecer
naquele apartamento. Chovia
torrencialmente e as sombrinhas só foram encontradas quando uma delas teve a
idéia de procurar no forno do fogão. O
tênis apareceu dentro da geladeira, o pijama debaixo da cama, a escova de dente
dentro do sapato...
Rafael tentava de tudo pra provocar
uma reação, mas o diálogo era curto e entrecortado. Até que um dia o silêncio se quebrou. As duas discutiram, brigaram. Era um ping-pong
de ofensas. Isso era muito bom, pois
finalmente estavam se enxergando, uma sentindo a presença da outra.
Chegou o domingo. Dona Terezinha
acordou cedo. Abriu as janelas e o sol
acordou Maria Cristina.
Estranho... A mesa do café já estava
posta. Ao levantar a xícara, cada uma
encontra um cartãozinho escondido. A
curiosidade aguçada aparece nos olhos. Abrem-nos. "Perdão por tudo. Amo muito você".
Entreolham-se desconfiadas e
pensativas. Num ímpeto se abraçam. Um abraço que começou tímido, inseguro e que
foi se apertando... Apertando, ao ponto de uma sentir o coração da outra pulsar
descompassadamente.
As lágrimas não são contidas e
teimosas inundam-lhes os olhos.
Aquele momento foi mágico. Foi o resgate de sentimentos adormecidos e
esquecidos pela rotina desgastante do dia-a-dia, pelo acúmulo de problemas e
principalmente pela falta de diálogo.
Rafaelzinho não se continha. Voava pra cá pra lá, batia as asas com a
agilidade e rapidez do beija-flor. Tanto
que mãe e filha percebem que o ar se
movimenta diferente, Um ar fresco as
envolve e as janelas estavam fechadas...
Mas, anjos são invisíveis... E o
nosso anjinho de travesso tornou-se herói.
E naquele cantinho bem
simples nunca mais faltou música e flor.
O silêncio foi embora de vez
e pra ficar entrou o AMOR.
A missão estava cumprida. Era hora de voltar. Faltava só uma coisinha. Ele pregou na porta
do apartamento 21 a plaquinha: "Um
anjinho protege esta casa".
( assinado: RAFAEL)
Um comentário:
Adorei a imaginação e a criação da história! Que delicadeza! Você faz falta em nossas aulas! beijos Dnah.
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