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sexta-feira, 15 de julho de 2011

TRÊS IRMÃS E UM DELEGADO - Suzana Lima



TRÊS IRMÃS e UM DELEGADO

Suzana da Cunha Lima


As três irmãs moravam num sobradinho pequeno, herança de família. Sala e quarto, banheiro, uma cozinha minúscula e uma área menor ainda, onde lavavam e estendiam roupa. A mãe tinha falecido há tempos, o pai morrera de desastre, não havia ninguém por elas.

Na garagem, Eunice, a mais velha, tinha montado um pequeno salão de beleza. Era excelente cabeleireira e seus ganhos engordavam as parcas pensões deixadas pelos pais.

Bonitona, alegre, meio fornida de carnes, era quem comandava a casa e as finanças por ser bem mais velhas do que as irmãs. Há alguns anos namorava discretamente um senhor casado pouco exigente de sua presença, mas generoso. Situação que lhe agradava muito porque amava a liberdade e não desejava, de modo algum, nem morar com ninguém, nem trazer homem para dentro de casa.

Juliana, a do meio, não muito afeita aos estudos, ao terminar o segundo grau, foi se empregar como recepcionista numa clínica. Era a mais bonita das três e a mais namoradeira, sempre sonhando com um marido rico. Mas na vida real, só arranjava namorado malandro. Mariana, a mais moça, estudiosa compulsiva, ainda arranjava um tempinho para trabalhar na biblioteca e sua meta de vida era entrar na Universidade.

As três tinham nascido e se criado naquele bairro, onde praticamente todos se conheciam. Educadas e alegres e se davam bem com todos os vizinhos, colegas de escola e trabalho. Enfim, viviam modestamente, sem nada que as distinguisse das outras pessoas da comunidade, a não ser pelo fato de não haver pai nem mãe vivos ou parentes que as visitassem.

Uma manhã, ainda cedo, bate a polícia na casa delas. Juliana no trabalho, Mariana na escola, quem atendeu foi Eunice. O salão abria mais tarde e Eunice estava no banho, custou a ouvir a campainha estridente e insistente. Saiu correndo se embrulhando num roupão de banho e foi espiar pela janela. O policial, lá embaixo, um louro barbudo, meio carrancudo e bem impaciente, mostrou de longe sua credencial e disse que ela precisava assinar uma intimação. Meio assustada, ela pediu para ele subir e se acomodaram na pequena sala. Havia um sofá (onde Eunice dormia) uma poltrona, a televisão e um som, tudo modesto, mas confortável.

O policial entrou, deu uma vista de olhos no ambiente e perguntou quantos moravam ali e quem estava presente no momento. Foi tirando os documentos da pasta e pediu-lhe para assinar. Disse que havia uma denúncia que ela estava alugando quarto para terceiros e que não havia pedido licença na Prefeitura. - Alugar quarto?- replicou Eunice, um pouco espantada - Só temos um que é onde dormem minhas irmãs. Esta casa mal dá para nós. Mas essa gente não tem mesmo o que fazer... Ia falando e lendo e aí notou que o endereço não era o dela, tampouco o nome do indiciado. Começou a ficar desconfiada, com o coração se apertando. Levantou-se e encaminhou-se à porta, doida para colocar ele para fora, enquanto informava que aquele documento nada tinha a ver com ela, nem lhe dizia respeito e a denúncia era completamente infundada, como ele mesmo podia perceber pelo tamanho da casa. Tarde demais percebeu que tudo aquilo tinha sido um pretexto para o homem entrar na sua casa, sabendo-a sozinha.

Desmaiou com o éter que ele lhe colocou no nariz e só acordou muito depois. Ensangüentada, machucada, sem roupa e com a sala toda revirada. Mal conseguiu ligar para seu namorado que veio correndo, indignado e pesaroso. Levou-a à polícia, fizeram exame de corpo de delito, foi apresentada queixa e Eunice fez uma descrição detalhada do estuprador, ainda fraca e indignada com o que tinha acontecido. Nada tinha sido roubado, porque o pouco dinheiro que conseguiam juntar guardavam embaixo, na garagem, mas a violência do fato calou fundo tanto nela quanto nas irmãs.

De repente, aquilo tinha acontecido com uma delas e não com os outros. Um estupro! Eunice voltou para casa revoltada e encheu as irmãs de recomendações para não abrirem a porta para qualquer um, policiais ou não. Tinha esperanças que achassem logo o criminoso para poderem viver em paz. Mais ainda, queria esquecer aquele episódio tão traumatizante sua vida.

Uns dias depois foi chamada à delegacia para ver se reconhecia algumas das fotos dos procurados pela polícia. Toninho foi junto, estava muito preocupado com ela, nunca a tinha visto tão amarga e indignada.

Havia grande movimento de gente neste dia. Um policial atencioso conseguiu a custo, uma cadeira e uma mesinha, onde colocou alguns álbuns de fotos. Depois foi arranjar café para ela e Toninho. Eunice sentou-se e começou a folheá-los quando ouviu uma voz grossa de homem elevar-se acima do burburinho. Olhou sobressaltada para o corredor e viu um homem parar em frente à sala onde estava. Com pastas na mão, dando ordens, parecia algum graduado. Levou o maior choque. Não acreditou no que estava vendo. Era ele, o homem que a havia estuprado! Não estava fardado, nem com barba, mas ela o reconheceria mesmo que vivesse mil anos! Que fazia ali na delegacia, tão à vontade? Embora ela estivesse no fundo da sala, não queria, de modo algum, que ele a visse. Abaixou-se um pouco e perguntou ao policial que vinha com o café, quem era? Ele sorriu e disse:

- É nosso super delegado, coordena a ação de cinco delegacias e está indignado com a ação deste estuprador. Chegou há um mês para nos ajudar. São muitas queixas deste criminoso que se veste de policial, tem credenciais e assim vai enganando as pessoas. Qualquer hora ele vai lhe chamar, quando estiver com seu prontuário na mão. Está muito interessado em pegar o canalha.

Observou Eunice com o álbum aberto, sem reparar no seu nervosismo. - Acho que você não vai achar nada aí. Há mais de três anos que ele age impunemente, o último caso foi o seu e você teve muita sorte. Geralmente ele estupra e mata. As poucas vítimas que sobreviveram ou raras testemunhas que o viram perto do local do crime, ou pensam que o viram dão descrições desencontradas: careca, de bigode ou barba, ruivo, enfim, é certo que ele se disfarça quando quer fazer suas bandalheiras. Parece que está sempre de uniforme, carteiro, bombeiro, policial, porque sabe que assim pode se aproximar das pessoas sem despertar suspeitas...

- Policial... disse Eunice balbuciante e muito amedrontada.- Quem entrou na minha casa foi um homem fardado, igual ao senhor, só que era barbudo e louro.

.- É assim que ele age mais, como policial. Mas não sabemos se é um policial mesmo ou alguém que se veste como tal. Nossa corporação tem muito orgulho da profissão, somos treinados para ajudar os cidadãos, dar-lhes segurança, não é? Por isso estamos loucos para pegar este canalha que está sujando o nome da polícia. Mas é um caso difícil, sabe? As delegacias próximas estão cooperando, porque não é apenas nesta circunscrição que ele atua. A senhora teve uma sorte danada, ele geralmente mata as vítimas, acho que pensou que estava morta. Mas não perca as esperanças, vamos pegá-lo. E tome muito cuidado, porque ele pode acabar sabendo que a senhora está viva e tentar queimar arquivo, se é que me entende.

Eunice respirou fundo, apavorada: – Claro que entendo, mas tomar cuidado, como, senhor policial? Se ele souber que não morri, estou perdida. Por favor, não diga a ninguém que estive aqui, afinal, ele sabe onde moro, pode querer acabar o serviço que não terminou. E tenho mais duas irmãs em casa. Para todos os efeitos, todo mundo precisa pensar que estou morta.

- Isso é um pouco difícil, não acha? A senhora mesma deu queixa, descreveu-o, fez exame de corpo delito e está bem viva. Mas o serviço aqui é um pouco moroso. O IML demora até fazer relatório. Quando chegar, posso segurar uns dois dias, depois tenho que passar adiante para os chefes. E guardo a ficha de hoje. Se me perguntarem, digo que a senhora não reconheceu ninguém, se sentiu mal e foi embora. Está bem assim? – olhou-a penalizado, com muita dó da situação dela.:

- Mas tem razão: passa muita gente por aqui e alguém pode comentar seu caso. Aliás, nosso superdelegado pode querer ele mesmo levar adiante esta investigação. Veio aqui para isso, não foi? Todos nossos esforços estão concentrados para achar este safado. Nos dê um tempo e já o pegamos. Mas até lá, quer um conselho? Você e suas irmãs saiam um pouco da cidade e não digam para ninguém aonde vão. Deixem a poeira baixar.

Toninho ajudou-a a se levantar falando ao policial: - Ela está muito abalada ainda e ver as fotos a deixou pior. Vamos aceitar seu conselho e neste tempo ela se recupera e ainda pode ajudar os senhores.

Despediram-se e saíram rápido da delegacia. Eunice tentava desesperadamente achar uma saída. Não podia lutar contra alguém tão gabaritado como aquele delegado. Jamais iriam acreditar que ele é que era o estuprador, valendo-se das facilidades de seu cargo para acabar com a vida de tanta mulher inocente. Um psicopata pervertido e com autoridade, que combinação mortal... O que fazer? Resolveu não contar para Toninho que tinha reconhecido o estuprador na figura do superdelegado. Não queria também expô-lo desnecessariamente.

Conversou com ele sobre as providências que pensava tomar. Ele a apoiou no que podia, era um bom homem e gostava muito de Eunice. Chegou em casa cansada e cada vez mais revoltada por ter que desmanchar uma vida inteira por conta de um criminoso desclassificado, um assassino que se escondia sob a farda de uma instituição que deveria proteger os cidadãos. Esperou as irmãs voltarem, contou o acontecido e comunicou sua decisão.

- E assim, temos que ir embora daqui o mais depressa possível. Toca a fazer as malas e embalar o que der. Já trouxe caixas do supermercado. Quero sair daqui amanhã cedo. Vamos direto para a Rodoviária. O miserável já deve saber que eu o vi lá, sou a única testemunha viva, estamos correndo sério perigo.

As irmãs ficaram atônitas com o caso. Afinal, sempre haviam morado ali, tinham raízes, amizades, bons vizinhos.

- Não se preocupem, é só por uns tempos, até prenderem aquele canalha. Uma hora a gente volta. .Mariana, passei no seu colégio e já pedi os papéis de transferência para outra escola. E quando estivermos seguras em outro estado, eu envio uma carta denúncia e espero que haja gente decente que consiga prendê-lo. Já conversei com Toninho: ele vai comprar nossa casa por bom preço, com esta verba poderemos começar em outro lugar. E pode também guardar alguns móveis nossos, no depósito da firma. Toninho me ajudou muito, não sei o que teria feito sem ele... e aí ela não aguentou a pressão e começou a chorar convulsivamente. As irmãs a abraçaram, ainda sem saber o que pensar ou dizer sobre o caso. Eunice era a força da casa, o esteio, a irmã quase mãe em quem confiavam cegamente. Era duro vê-la tão alquebrada. Mas ela se refez logo, seu coração apertado ao ver a expressão desarvorada das irmãs. E continuou a informar sobre as providências que deviam tomar.

- Toninho pensa que vamos para o nordeste, acudir nosso avô. E é isso que vamos dizer para todos.

- E não vamos para lá? – perguntou Juliana, já imaginando que poderia arranjar um bom namorado por aqueles lados. Nem tinha idéia em que estado ou cidade do Nordeste iriam morar.

- Vamos, para todos os efeitos. Não quero deixar pista alguma, afinal sou um perigo para ele, uma testemunha. Para quem perguntar, temos um avô velhinho lá que precisa de alguma assistência e pediu nossa presença por uns tempos.

- Nem sabia que ainda tinha avô – disse Mariana ainda perplexa com a rapidez das providências da irmã.

- Nem eu, mas agora temos. E aviem-se, já contratei uma van para nos levar junto com algumas tralhas, principalmente o equipamento de meu salão. Posso começar a vida em outro lugar e Juliana me ajuda no início, até arranjar emprego. Fecho a casa amanhã. – suspirou desolada, olhou séria para as irmãs:

- Não comentem nada sobre este assunto. Nem um pio. Vamos embora, este país não tem jeito mesmo. Vejam só, um policial gabaritado estuprando e assassinando pessoas de bem e solto por aí. – e aí recomeçou a chorar lamentosamente, soluçando aflita diante do perigo que representava para suas irmãs enquanto estivessem ali.

Elas estavam desoladas e não sabiam como consolar Eunice.

- Não chore não, mana. Vamos sair dessa. E vamos começar uma vida nova, seja lá onde for. – animou-a Mariana, enquanto Juliana abraçava a irmã, todas quase em transe diante daquela situação tão extrema.

Dia seguinte o caminhão levou tudo. Elas se arrumaram e foram para a calçada esperar o táxi que ia levá-las à rodoviária. Desolação em seus rostos. Moravam ali desde pequenas, conheciam a vizinhança toda. Alguns amigos vieram se despedir, colegas de escola, clientes de Eunice. Seria impossível guardar segredo de uma coisa dessas. Era uma comunidade pequena e como tal gostavam de especular sobre a vida de um e de outro, porém sempre muito solidários e prestativos. Mesmo mantendo a história do avô no nordeste, Eunice sentia o perigo rondando sua casa, daí sua premência em ir embora. Toninho se despediu, choroso. Gostava mesmo de Eunice, mas não havia jeito de poder ir junto. Tinha mulher e filhos, muitas obrigações.

- Vou depositar o dinheiro em sua conta ainda esta semana, minha querida. Não se preocupe. Quando tiver se estabelecido, não deixe de me escrever. Estou achando o nordeste muito longe, vou sentir muitas saudades suas, sabe quanto gosto de você. – abraçou-a desolado - Arranje um lugar mais próximo de São Paulo, Nice. Hoje minha irmã disse que a casa dela em Itapetininga é muito boa, poderia alugar para vocês. Sabe que ela casou? E vem morar aqui em São Paulo.

Eunice estacou apreensiva, pensando: - Puxa vida, Toninho já comentou minha situação, que é tão sigilosa, com a irmã. Com quem mais? Se isso cái nos ouvidos errados? Ainda bem que não disse a ele que tinha reconhecido o estuprador e ele pensa mesmo que vou para o Nordeste. Céus, tenho que sair daqui bem depressa.. Ainda bem que ninguém sabe para que lugar eu vou. – respirou fundo para não transparecer sua preocupação:

- Agradeça a ela por mim, Toninho. Logo que eu clarear minhas idéias eu lhe telefono e quem sabe aceito a oferta. É aquela sua irmã professora que tinha ficado viúva há tempos?

- Ela mesma, minha querida. Aposentou-se agora, conheceu um homem de destaque da polícia local, veja só! E resolveram se casar mais rápido porque ele veio chefiar um comitê especial na Polícia de São Paulo, para investigarem estes casos de estupro e morte que tem acontecido nestes últimos anos. Um superdelegado! Vão morar aqui. Então, agora, é questão de tempo, este bandido está com os dias contados. Não se preocupe!

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