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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

O que pode acontecer quando você sai de casa? - Hirtis Lazarin



          Era dia de domingo.  O sol brilhava intenso e soberano.  Nenhuma nuvem a vista.  Era tudo o que Lígia precisava. 


          Ela e seu filho Pedrinho de dez anos saíram de casa bem cedinho e animados como nunca.   Passariam o dia no sítio "Vivenda Feliz", onde encontrariam familiares próximos e outros que há muito tempo não se viam.  Era o aniversário do tio Joaquim que completava oitenta anos, o mais idoso da família.  A festa teria a participação de todos e os preparativos haviam começado meses antes.  Nada podia sair errado.

          O percurso era extenso, mas a rodovia recapeada recentemente facilitaria bastante o acesso.  Sem falar no carro novinho em folha.

           Os dois, felizes como nunca, não viam a hora de encontrar a família toda reunida.  Tagaleravam sem parar. 




          Um vento fraco começou a soprar e, num piscar de olhos, foi se tornando cada vez mais forte.  




Nuvens negras surgiram do nada, foram se ajuntando e, em pouco tempo, o sol estava encoberto e tudo escureceu.  


Parecia noite e nem era ainda oito da manhã.  A chuva começou a cair sem dó nem economia.  O limpador de pára-brisas não dava conta do recado, nem mesmo acionado em sua velocidade máxima.  
Riscos luminosos cortavam o céu de ponta a ponta, iluminando temporariamente aquela escuridão que amedrontava.



          Pedrinho começou a chorar, mas Lígia, segura de si, passava tranquilidade ao filho:
          __ Estou dirigindo bem devagarinho e com os faróis de neblina acessos.  Já enfrentei situações parecidas.  Meu filho, com cautela, tudo acaba bem. Fique calmo.
          Lígia acreditava que tudo passaria logo.  Era mais uma chuva de verão, pensava ela.  Mas as horas foram passando... só a tempestade não passava.  O vento uivava, batia forte nas árvores arrancando pedaços de galhos que eram lançados longe.  Muitos caiam no asfalto, dificultando qualquer manobra com o carro.  Num determinado momento ela freou  bruscamente o carro; um tronco pesado e grosso estava atravessado na pista impedindo a passagem.
A mãe tinha que tomar uma decisão rápida já que seguir em frente era impossível.

           Lembrou-se, então, de ter visto, a alguns metros atrás, uma entrada que dava acesso uma outra estrada.  Lembrou também de uma placa indicando direção alternativa.

          Não pensou duas vezes.  Num movimento brusco, deu meia volta, passou pro outro lado da pista e rapidinho chegaram lá.  A placa indicativa não estava mais ali, provavelmente fora arrancada pela força do vento.  Mesmo assim, seguiu em frente, sem saber onde iria parar.  A estrada era coberta com pedregulhos, o que facilitava o trânsito por ela; não havendo o risco de ficar atolada.
          Como o vento e a chuva continuavam fortes e a visibilidade era mínima, decidiram  parar o veículo no acostamento e esperar...


          Tudo estava deserto, não se via carro nem viva alma.


          Ela sofria em silêncio.  Tentava disfarçar a situação inventando brincadeiras e historinhas para Pedrinho.

          Ficaram parados ali por longo tempo e o menino cansado acabou dormindo.

         Lígia, sempre atenta e olhos bem abertos. conseguiu vislumbrar uma luz, bem tímida, lá longe, no meio do mato, atrás de gigantescas árvores.
          __ Se há luz, provavelmente há gente.   
                                         
          Não havia outro jeito, senão sair do carro, enfrentar vento e chuva e tentar abrigo naquele lugar.

          Acordou Pedrinho.  Enrolados numa manta que ficava sempre guardada no carro e abrigados por um guarda-chuva velho, seguiram a pé entre árvores, arbustos e muito barro.  Foram chegando, com muita dificuldade, cada vez mais perto daquela luzinha até que depararam com algo jamais visto antes.
          Mãe e filho arregalaram os olhos, e a voz saiu com dificuldades:
         __ Meu Deus do céu!  O que será isto no meio desse mato?  Parece um castelo!  exclamou Lígia.     
                                                                                                               

          Estavam diante de uma construção muito... muito grande; paredes altíssimas e arredondadas pintadas de preto.  Três torres vermelhas em três tamanhos diferentes apareciam na parte central da obra.  A entrada era bloqueada por portão de aço. Bem escondidinha,  mais ou menos a um metro do chão, no final daquele paredão, estava uma janelinha e dela saía uma luz, aquela mesma luz que atraiu Lígia.                         
                                                             

          Uma fortaleza, pensou ela.  Impossível fazer contato com seus moradores. Mesmo assim Lígia tentou: chamou, gritou, berrou, até cantou.  Ninguém apareceu.

          Os dois se abrigaram debaixo de uma árvore, ambos encharcados e morrendo de frio.  Esperavam que alguém chegasse ou então saísse daquele castelo e os socorresse.

          Num repente o portão começou a descer lentamente,  sustentado por correntes grossas e pesadas.  Saiu de lá um carro em alta velocidade.  Os dois gritaram tanto que até rouco ficaram. Não foi  possível ver os ocupantes, nem se fazer ouvir. 
          Antes que o portão voltasse a ser acionado, Lígia agarrou as mãos de Pedrinho e, num movimento rápido e preciso, saltou pra dentro daquele lugar tão misterioso.  
          Olhou pra todos os lados e não viu ninguém.  Pularam uma janela entreaberta indo cair num imenso salão.  Era uma escuridão só.  Tateando aqui e ali,  ela tocou numa coluna imensa; ali sentaram-se e ficaram escondidos, aguardando os acontecimentos.

          Silêncio e escuridão. Não era possível enxergar nada.

          Repentinamente, não se sabe como nem de onde, foram surgindo pontos luminosos que se moviam aos pares, aqui e acolá, como se estivessem dançando. Seriam olhos?  Mas olhos desprovidos de corpos?  


Aos poucos esses pontos luminosos foram se acomodando, todos na mesma altura, perfilados em linha reta. 

           Um som diferente e forte invadiu o local.  Era o barulho provocado pelo bater de muitas asas ao mesmo tempo, acompanhado por pios estridentes e risadas debochadas. 

Durou bem pouco.  O barulho foi diminuindo até  sumir completamente.

Velas, muitas velas foram se acendendo, distribuídas por todos os cantos.  O ambiente começou a se mostrar.  Lígia agarrou Pedrinho e correu, escondendo-se atrás de um móvel de madeira esculpido em forma de dragão.                                            
          Graças a Deus,  ainda não tinham sido descobertos.  Dali conseguiam assistir a todos os acontecimentos.  E que acontecimentos!

A sala ficou iluminada!  Ligia não acreditava no que via.  Beliscou o braço uma, duas, três vezes. É, não estava delirando nem sonhando.  Estava acordada, olhos bem abertos e tudo a sua volta era real.

          Bateu os olhos por toda a sala.  Numa das paredes,  prateleiras iam do chão ao teto, decoradas com urubus empalhados.  Que horror!  Eram tantos que nem dava pra contar.   Um viveiro sem portas abrigava outra porção de urubus vivos.  E em cada canto do salão, casais de águia esculpidos em pedra pareciam tomar conta do lugar.


          Ah!  Agora com a claridade, já era possível decifrar o segredo dos pares de olhos luminosos.  Eram olhos mesmo e pertenciam a figuras esquisitíssimas, todas iguais fisicamente: eram anões carecas, mãos e pés grandes, desproporcionais àqueles corpos miúdos e franzinos; no rosto os olhos pareciam dois faróis.
          As aves, que no início batiam as asas freneticamente, agora, calmas, pousavam no ombro de cada anãozinho; eram diferentes de tudo o que já se tinha visto: negras, corpo pequeno coberto de pelos e asas imensas cobertas de penas.  O bico vermelho era pontiagudo e curvado pra baixo, lembrando bico de águia.

          Rangeram-se correntes.  Uma porta se abriu.  Vozes femininas entoavam um cântico melancólico e anãzinhas foram aparecendo;  uma a uma foi se posicionando ao lado de cada anão.  Elas tinham os cabelos negros e compridos até a cintura, orelhas grandes tal qual coelho e unhas compridas pintadas de vermelho.

         Lígia e Pedrinho paralisados assistiam a tudo.  Parecia um pesadelo surreal. 

          Toques de trombetas se fizeram ouvir.  Os casais de  anões sentaram-se com as pernas cruzadas e as aves acomodaram-se no colo deles.  Os trombeteiros, vestidos de veludo vermelho, entraram perfilados, anunciando a chegada de um homem forte e garboso, vestindo roupas coloridas e extravagantes, ostentando jóias nos dedos, pescoço e pulsos. 
Ele entrou triunfante, acompanhado de dez lindas mulheres, vestidas como princesas.  Cada uma carregava um cesto cheio de moedas de ouro.  Foi reverenciado por todos os presentes.  Dava pra sentir que,  para eles, esse homem era mais que um rei, um Deus, talvez.

           Cheio de cerimônia, sentou-se numa almofada macia e confortávelmente instalada num plano superior.  Enquanto isso  as trombetas voltaram a tocar.

          Após um leve comando de suas mãos, tudo parou.  Nada se ouvia, a não ser a respiração dos presentes.


          Uma voz soou bem alto, mais parecia um grito.


          O Senhor dos senhores, na posição em que se encontrava, fez um breve discurso.  Lígia permaneceu estática, não entendendo nada da língua desconhecida do homem.
          Assim que terminou, o olhar de todos voltou-se para o teto do salão que gradativamente foi-se abrindo.  Dez aves de rapina, com bicos protuberantes, desceram e voltaram, cada uma levando no bico um pote com moedas de ouro.  Desapareceram silenciosamente do mesmo jeito que chegaram.
          Assim que o teto se fechou, as velas, pausadamente, foram se apagando uma a uma.  A claridade foi embora e a escuridão volta.  Todos desaparecem  do salão num passe de mágica.  Era um mistério só.



          Lígia e Pedrinho permaneceram escondidos, temendo serem descobertos.  Sabiam que teriam que fugir dali... Mas como ultrapassar aquelas muralhas?  

          Cansados e com muito sono, arrastando-se pelo chão silenciosamente, procuravam uma saída. 

          De repente entraram num quarto assustador.  Havia ali centenas de aves empalhadas; num outro quarto encontraram amontoados de correntes e argolas de diferentes materiais e tamanhos, preenchendo todo o espaço; depois entraram em uma sala com tantas ferramentas que causaria inveja a qualquer ferramenteiro. 

          Até que pararam apavorados. 

Miados estridentes eram ouvidos.  Lígia protegeu o filho envolvendo-o com seus braços.  Um gato preto de pelos arrepiados e olhos esbugalhados passou  feito doido, e logo atrás um lobo, isso mesmo, um lobo uivando alto, perseguindo o gato.  



          __ Meu Deus!  Não falta mais nada pra acontecer nesse lugar esquisito!  Se sairmos vivo daqui, ninguém acreditará em nossa história. __ Pensou Lígia.
          Com as forças esgotadas  lígia olhou pra todos os cantos, buscando qualquer possibilidade pra se safar daquele lugar.  Quando tudo já parecia perdido, ela viu uma luz no final do túnel.  Isso mesmo!  Não é força de expressão, não.  Viu realmente  uma luz iluminando o final de um corredor comprido, estreito e cheio de portas.  Caminharam apressadamente pelo corredor e de cada porta que ultrapassam saiam gritos, choros, berros, os mais diferentes e desesperadores sons.

          Finalmente alcançaram o final do corredor.  Lígia ficou surpresa ao ver aquela janelinha que deixou passar luz para o exterior, a mesma luz que a atraiu para aquele lugar.  A passagem era bem estreita e sem grades.  Com jeitinho, espremendo aqui, espremendo ali, conseguiram ultrapassá-la, chegando ao mundo lá  fora.

          Mal falavam.  A sensação de liberdade e alívio sentida era tão intensa que não dava nem pra explicar.



          Lá fora, nem chuva nem vento.  Já era noite e o céu estava estrelado. Correram até onde deveria estar o carro.  E lá estava ele intacto.

          O que mais queriam naquele momento era voltar pra casa, tomar um bom banho e dormir... dormir muito.  Nem fome sentiam.

          Pensar no aniversário do tio Joaquim, só no dia seguinte.

          Pensar naquela aventura que só acontece em contos de bruxos e feiticeiros, algum dia... Talvez.

(atividade sugerida: descrever um castelo esquisito.  Descrever a mobília gotesca e disforme.  Descrever os sons estranhos que se ouve nele.  Descrever as pessoas que lá habitam e contar um fato pitoresco acontecido nesse ambiente)
Texto criado por Hirtis

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