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quarta-feira, 20 de junho de 2012

A Fada e o Príncipe - Suzana da Cunha Lima




A FADA E O PRÍNCIPE
Suzana da Cunha Lima


Fui remexer as velharias do sótão de mamãe e a alergia bateu forte, espirrava sem parar. Olhos lacrimejando, me sentindo péssima com toda aquele poeira, um cheiro de um passado onde não houve glórias, nem medalhas, só cacarecos e objetos destroçados, carcomidos pelo tempo e falta de uso.

Mas minha filha queria algo dos anos 40, para a Festa do Passado que ia haver na Escola e não houve jeito. Precisei enfrentar os fantasmas e os macaquinhos que teimam em se abrigar nos sótãos empoeirados de qualquer família.

Ela foi comigo e estava se divertindo muito retirando coisas e mais coisas do velho baú que não conseguia identificar com seus conhecimentos de um mundo tão simples, limpinho e funcional como o seu.

- E isto, o que é, mãe? E aquilo? E toca a rir e debochar daquelas saias rodadas, as anquinhas e corpetes, os xales e luvas e os objetos de toucador, outrora de porcelana e agora já lascados e riscados, sem sua beleza anterior.
 Afinal achamos uma saia e um xale ainda apresentáveis e que poderiam vestir uma sinhazinha daquele tempo. – Era da bisa Simone, mamãe? Bem que diziam que as francesas eram elegantes... Que corpinho ela tinha, heim? Meu biso não era bobo não...Agora é só levar para a lavanderia que vai ficar ótimo. Posso usar com sua blusa de seda branca!!! E desceu voando a escada já com a mão no celular para avisar as amigas do achado.

Fiquei para arrumar aquela bagunça toda e, de repente, encontrei uma caixa de sapatos bem fechada com barbante. Abri, curiosa e me deparei com um maço de cartas amarradas com uma fita de chamalote rosa, bem desbotada.  As cartas estavam em bom estado e picou-me a curiosidade. Quem as teria escrito?

Saí do sótão aos espirros, e me encaminhei para a varanda, com o maço na mão.  Ali, na quietude de uma tarde se despedindo, desamarrei o pacote e fui pegando as cartas, aleatoriamente, querendo saber quem as tinha mandado e para quem e principalmente, de que se tratava.

Praticamente todas as que consegui ler, naquela hora, se reportavam às preocupações normais de uma família, em que o pai viaja muito, tem um filho malandro que não quer estudar, negócios que devem ser atendidos etc, compromissos sociais e outras coisinhas. Tudo corriqueiro e sem graça, a não ser pelo tom cerimonioso que se usava então, mesmo entre marido e mulher. Alguns nomes ainda me pareceram familiares, mas, de modo geral, não havia nada de excitante e sensacional nelas, nenhum segredo misterioso, quem sabe um crime? Por que então estavam tão bem embaladas? Que serventia teriam agora?  Não valia meu tempo nem a poeira que eu aspirara. Foi quando notei um saquinho de seda amarrado com uma fita de veludo, bem escondido no meio delas.

Meu interesse despertou outra vez, e excitada, desamarrei o laço de veludo comecei a tirar uma carta por vez, para ler, preocupada em não rasgar o fino papel de seda em que tinham sido escritas. Percebi que era uma correspondência amorosa, entre um homem que se assinava Príncipe e uma mulher , Fada. Portanto, só podia ser um amor proibido, já que nem os próprios nomes colocavam. Seriam casados com outras pessoas? O Príncipe teria engravidado a Fada e sumira? Quem seriam a Fada e o Príncipe?

Li sofregamente quase todas, até o sol desaparecer e aí entrei na casa, com as cartas na mão, pensando naquele sentimento tão grande que havia se perdido nas brumas do tempo e, com certeza, despedaçado dois corações. Mas quem machucara quem? O que acontecera com a vida destas pessoas? 

Comecei a matutar a respeito, rememorando as histórias de minha família, sempre contadas, recontadas e aumentadas pela minha avó, a fiel depositária da memória familiar.

Tentei reler as cartas outra vez, buscando uma pista qualquer e reparei em uma, que eu não tinha lido ainda. Chamou-me a atenção o papel cor de rosa decorado com pequenas pinturas feitas a bico de tinta, um trabalho artesanal muito bonito. A letra da mulher denunciava pessoa de classe alta, culta e pareceu-me, muito decidida.

Era a da amante, claro.  Esposa naquele tempo não assinava com apelidos.  O teor da carta confirmou a imagem que estava montando daquela mulher; alguém que se sabia poderosa.

Meu amado Príncipe

Chegou a hora da verdade. Temos que fazer uma escolha e sei que não será fácil para ninguém. A verdade é que não somos livres. Temos uma família construída antes de nos conhecermos. E se a paixão tomou conta de nossas vidas com toda sua força destruidora e possessiva, agora cabe a nós dar um rumo certo para este sentimento. Não há segredo que perdure nem mentira que não se revele. E agora sua mulher descobriu tudo, quase na hora de embarcarmos para a Europa; passagens compradas, malas feitas e a vontade louca de iniciar uma vida nova em minha terra natal. Que fazer? É o destino.

 Não se lamente, meu amado, meu querido homem.  Quem ia garantir que seríamos felizes na França, deixando tantas mágoas e rancores para trás e levando conosco a velha culpa e remorso que ia acabar contaminando todo o nosso belo sentimento?

Vamos colocar as cartas na mesa.  Sua mulher e eu tivemos uma conversa séria, adulta e pode até se espantar,  civilizada. Ambas percebemos que não adianta lutar uma contra a outra, deixando você encostado na parede. Não foi uma conversa fácil, claro, mas após a explosão das emoções e sentimentos não compreendidos, chegamos a uma decisão.

Você é o homem que amamos, mas nós não o dividiremos uma com a outra nem com ninguém mais.  Portanto, cabe a você a decisão. Você escolhe com quem quer ficar. A outra aceita a decisão e desaparece de sua vida para sempre.
Sua Fada, hoje e sempre e para sempre.

Fiquei pensando. Qual delas o Príncipe escolheu?  Pelo visto a amante era bem mais resolvida do que a mulher, mas, afinal, quem tinha a posição e os direitos era a esposa.

Situação difícil.  Comecei a rememorar conversas antigas, velhas histórias, quase lendas, repetidas em voz baixa e que se calavam à proximidade de nós, crianças.  Em que tempo isso se passou?  Seriam meus avós maternos ou paternos? Ou se reportavam a tias ou tios que eu nem chegara a conhecer, algum membro distante da família ? Era da geração de meus bisavós, com certeza, tempo de preconceitos, tabus, costumes severos.  Mas quem, meu Deus, quem eram a Fada e o Príncipe?

Tentava desesperadamente me recordar enquanto ia dobrando aqueles finos papéis de seda  colocando-os cuidadosamente em seus envelopes, quando lembrei de ter visto uma espécie de relógio que os homens usavam, tipo cebolão, já sem ponteiros, todo manchado, que estava guardado no baú, junto com as outras quinquilharias.  Subi correndo e abri o baú outra vez, procurando o tal cebolão.  Abri-o, tinha dentro apenas uma foto manchada. 

Descolei a foto para ver se havia algo escrito atrás e  um pedacinho de papel dobrado,  meio manchado, surgiu quando o desdobrei, e lá estava escrito: 

Mariana, para sempre;

Fui buscar lá no fundo da memória quem seria esta Mariana. Céus, era a
primeira mulher de meu biso. Tinham ido viajar para a Europa e quando voltaram, meu biso trouxe uma francesa, a Simone, com quem tinha se casado, que encantou a todos por sua beleza e elegância. De Mariana, soube-se que pegara a tal influenza, ou gripe espanhola e morrera.

Esta história foi muito comentada, a seu tempo, pois ele cremara a esposa por lá mesmo, visto se tratar de uma doença facilmente propagável.  Verdade? Mentira?

E logo meu cérebro se abriu! A amante tinha sido a escolhida e a esposa sumira, conforme o acordo.  Simone era a Fada.

A fada tinha sido a eleita, mas o Príncipe jamais esquecera sua verdadeira Rainha.

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