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quarta-feira, 23 de maio de 2012

Três retratos e uma foto - Suzana da Cunha Lima





3 RETRATOS E UMA FOTO


Olhar aquelas marcas na parede acordaram minha memória e invadiram meu coração de tristeza e saudade.  Ali morava sr.Nicola, um velhinho inda rijo, com uma farta cabeleira quase toda branca e  uns olhos azuis penetrantes que pareciam conhecer todos os segredos do mundo.
Último dos imigrantes italianos que ainda tinham ficado na fazenda, tudo  que era de madeira na casa tinha sido feito por ele próprio, com suas próprias mãos, como costumava se gabar. Lembro-me como a casa era cheirosa e bonita, com cortinas de renda e vasinhos de violeta nas janelas. Na frente, um jardinzinho bem cuidado, sempre florido e uma trepadeira enroscada na cancela de madeira. O aroma do jasmim, na florada, perfumava todo o ambiente, conseguindo até superar o cheiro acre do pito de sr.Nicola.

Só restara o rumorejar do pequeno córrego, saltitando fagueiro pelas pedrinhas miúdas, ali perto. Era difícil de acreditar que aquelas quase ruínas tivessem sido, um dia, palco de tantas vivências
extraordinárias e, principalmente, pertencesse, de maneira tão profunda  a meu passado infantil, marcando-o para sempre..

Nas férias escolares, eu e meus primos costumávamos ir naquela casinha muitas vezes, ao cair da tarde, para escutar as histórias de sr.Nicola,  enquanto ele se balançava numa velha cadeira de balanço, fumando seu pito. Sentávamos excitados e ansiosos em banquinhos de madeira ali no alpendre, loucos para  ouvir o próximo capítulo de uma espécie de novela que ele prolongava, com maestria, por todas as férias, enquanto  siá Tonha, sua mulher, nos servia bolinhos de chuva e café adoçado com rapadura: café com gosto de pecado, porque criança, naquele tempo, não tomava café.

Muita coisa aprendemos ali, com sr.Nicola, sentadinhos no alpendre, hipnotizados por suas conversas.  Ele, às vezes interrompia a narração para mostrar um galo atrás da galinha,  um bichinho perseguindo outro, os sinais da natureza apontando a chegada da chuva, vento ou frio, e assim, dentro de sua simplicidade, fomos aprendendo os mistérios do sexo e da vida.

Eles sabia como entreter e manter interessada sua pequena platéia. Ia contando cada dia uma espécie de capítulo, mas sempre incompleto, nos deixando em suspense, ansiosos para saber como aquilo tudo ia acabar. Para mim, foi o precursor dos grandes noveleiros de hoje. Pois, no ano seguinte, ele fazia um remake daquela história, acrescentava alguns detalhes, mudava os nomes, dava uma nova roupagem. E a gente adorava aquela epopéia, pois ele não nos poupava dos detalhes sórdidos: havia bandidos desalmados, crianças abandonadas, traições conjugais, prostitutas ardilosas, bebedeiras, abandonos, sofrimento.

A história central era uma saga familiar e se reportava aos quadros pendurados em sua sala. Contava de um casal recém-casado que tinha vindo de uma terra muito distante para tentar a vida naquelas
paragens.  Tinham algum dinheiro e arrumaram aquela casinha com muito capricho. Ele era muito habilidoso, logo arranjou um serviço de marceneiro na cidadezinha próxima.  Ela era uma excelente doceira e foi logo muito requisitada para as festinhas locais. E, orgulhosos e apaixonados, colocaram seu retrato de casamento na parede. Tudo andava bem entre eles, até que vieram as crianças, e foram muitas.  Ela não tinha mais tempo para fazer os doces, ele ficava muito tempo na cidadezinha e quase não vinha à casa, mas arrotava riqueza quando bebia no bar.  A mulher se queixava da falta de dinheiro e de atenção do marido e ele não queria saber de nada, já tinha se enrabichado com uma mulher do local.   Quando falta dinheiro, diz o ditado, todos gritam e ninguém tem razão.

Um dia, apareceram dois ladrões atrás do dinheiro que o marido se gabava ter.  Quatro dos filhos brincavam à frente, dois estavam no córrego pegando água.  Foram testemunhas do massacre da família, por bandoleiros bêbados, que não acreditaram que não havia dinheiro escondido por lá.   Quando a notícia se espalhou no lugarejo, o pai ficou alucinado. Levou os filhos restantes para os avós cuidarem e foi no encalço dos bandidos.  Isso durou muito tempo, mas um dia ele os encontrou.  Bebendo num bar, já velhos, sempre arrogantes e canalhas. Passou fogo neles e tomou rumo desconhecido, para não ser pego pela polícia.

Os avós resolveram morar na casinha com os netos e tentaram ganhar a vida plantando uma roça pequena no quintal. Um  dia, eles todos estavam na feira vendendo os produtos de sua roça, quando o pároco pediu ao lambe-lambe local para  tirar uma foto  dos velhos e outro das crianças. Quem sabe o pai voltaria um dia e poderia reconhecer seus filhos pelas fotos? Eles penduraram estas fotos na parede da sala.

Mas os avós  foram ficando velhos e doentes, não podiam mais trabalhar na roça nem cuidar das crianças. Saíram da casinha e foram viver no lugarejo, num quartinho minúsculo cedido pelo pároco. As crianças ficaram aos cuidados das beatas do local. Os velhinhos não duraram muito, morreram. O pároco encaminhou as crianças para serem cuidadas por famílias de outros lugares mais ricos. E assim aconteceu. Ninguém mais soube deles.

 O tempo se passou, a casinha ficou sem habitantes um bom tempo. Ninguém queria saber de morar lá, era enfeitiçada, tinha havido assassinato, mortes, traição, só desgraças.

Mas um dia, vindo de terras distantes,  lá se instalou outro casal, com  duas filhas, muito diferentes um da outra.  Uma é adotada, diziam à boca pequena.  Tinham vindo de um belo sítio, uma terras de montanhas e  cachoeiras. Colocaram a foto deste  lugar na sala, junto com os dos outros.   Ninguém tirava os retratos da parede, embora as famílias não fossem as mesmas. Não tinham outros para colocar no lugar e eles, afinal, enfeitavam a sala.

Neste ponto,  seu Nicola fazia o maior suspense, - Uma tarde Apareceu por lá um guapo rapaz. Um príncipe louro montado num belo cavalo. Nós ríamos muito quando ele falava desta maneira...Não tem mais príncipe aqui no Brasil,   seu Nicolas. Ele não ligava, seus olhos brilhavam e continuava:
-  Estava cansado e sedento, vinha de muito longe. Na roça, todos se ajudam, aí a senhora deixou ele entrar na sala, deu-lhe água e foi passar um café.  Enquanto esperava, ele ficou curioso com aqueles quadros pendurados na parede e foi examinar de perto as fotos.

-  Quem são estas crianças? Perguntou.
Ela disse que não sabia, os retratos estavam ali quando lá chegara, enfeitava, deixaram lá, apenas colocaram a foto do lugar de onde tinham vindo. É bonito, não?
Ele olhou mais atentamente e seu coração quase parou.
- É sim, mas estou interessado nestas outras fotos, eu conheço estas crianças e estes velhos.- parou, quase sem voz, já chorando de emoção.
-   Sou eu e minha irmã neste quadro e no outro,  meus avós.
A dona da casa mandou ele sentar, deu-lhe a água e ouviu o resto da história:
 – Meus pais e outros irmãos foram assassinados covardemente, só sobrou nós dois. Fomos morar com nossos avós e depois que eles morreram, nos separaram, cada um foi viver com famílias diferentes e nunca mais soubemos um do outro. -  disse ele. Nestas alturas, naquela casa,  todos estavam chorando – dizia sr.Nicola nos observando, porque também nós estávamos segurando as
lágrimas. E aí ele continuava a fala do irmão:
- Agora eu pude voltar, sou maior de idade, vim à busca de minha irmã.
 Sabe onde anda esta criança agora? Já deve estar moça feita.

Foi um corre corre na cidade. Estupefação geral. Por onde andaria a menina do retrato? Foram à Igreja perguntar ao vigário, que era daquele tempo e estava bem velhinho.  Ele olhou nos seus cadernos e logo lhe veio à mente aquela história triste: A chacina que acabara com quase toda a família  que morava na casinha do riacho,  duas crianças sobreviventes e assustadas e dois avós  que não duraram muito. Dois órfãos para encaminhar!! Como não lembrar?

 -A menina foi adotada pela família Silveira, que morava em Brotas do Sul, naquela ocasião.  Eu não queria separar as crianças, mas esta família só queria a menina, então  o irmão ficou com  siá Antonia e depois sumiu, fugiu, não se sabe para onde.

E aí, foi a maior surpresa! A família Silveira era justamente aquela que morava na casinha agora. Há alguns anos haviam passado por aquele lugarejo e a pedido do pároco resolveram levar a menina para fazer companhia à filha que já tinham, já que a mãe não podia ter mais filhos.   Esta menina era a irmã dele, imaginem... E estava ali mesmo, naquela casa, moça feita! Foi difícil  explicar a alegria deste reencontro. Os irmãos se abraçaram chorando (nisso sr.Nicola era muito bom na narrativa e a
gente acabava chorando também)

Depois daquela emoção, o rapaz acabou contando sua grande aventura: fugira de siá Antonia, com raiva e desespero, por se separar de sua irmã e acabara num convento de frades, que o acolhera.  Mais tarde fora enviado para a cidade grande para estudar, visto se tratar de menino muito inteligente, mas sempre tinha o propósito de voltar e procurar a irmã.  Não queria ser padre.  Fugira outra vez, vivera muitas aventuras, e, depois de ganhar dinheiro com bons empregos, voltara atrás dela.

- Agora, dizia, vou ficar por aqui, é a minha terra e de minha irmã. Sou bom marceneiro, sempre ganhei bem e quero casar e  ter minha própria família.

Acabou casando com a filha dos Silveira.  Trabalhador, ganhou muito dinheiro, deu todo conforto à sua família.  Mas não conseguiu curar sua irmã da tuberculose que se alastrava naquele tempo.  Ela morreu ainda moça, para seu desespero. Mais uma perda!

Se sr.Nicola reparava que a gente ficava muito triste com tanta desgraça, ele arranjava um jeito de contar um final feliz. Ora inventava que havia achado uma cura para a irmã, ora o rapaz tinha
ganho dinheiro na loteria e fizera muitos melhoramentos na cidade e assim por diante.  Esta história teve muitos finais, de acordo com o IBOPE que estava dando na audiência.

Só muito tempo depois é que fui saber quanto desta história tinha de verdadeira. Aquele irmão que viera em busca da irmã, um dos sobreviventes do massacre, era o próprio sr.Nicola. Criado pelos avós, depois pelos frades e depois pela vida, esta grande mestra.

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