O DESCRENTE
Suzana da Cunha Lima
- Não acredito , não acredito em nada – vociferava meu tio,
lendo os jornais com tanta indignação que parecia que ia ter um ataque ali
mesmo.
- Não acredito em mais nada – repetia ele – já viram como
vão votar o novo Código Florestal? Cheio de emendas sem sentido, desfiguraram a
proposta! São uns pulhas, eta pessoalzinho sem caráter!
O jornal estava todo
desfolhado no colo dele, tal a fúria com que ele mexia nas folhas.
- Realmente não
consigo acreditar em mais nada! Isso é deprimente...Onde estava nosso Exército
quando os Sem Terra invadiram aquela bela fazenda do tio Juca? Improdutiva uma
ova! Era toda cultivada, uma beleza! E para quê? Eu já digo, é tudo mutreta da
política local. Ninguém daquela corja sabe pegar uma foice ou enxada, nunca
trabalharam a terra. Mas aí esse bando
de desocupados se assenta lá, com todas
as mordomias bancadas pela Prefeitura. Depois de um tempinho algum laranja
arremata tudo em algum leilão fajuto, e pronto, fica com a terra. Esse é mais
um golpe para enriquecerem depressa, pois todas estas terras são altamente
valiosas. Vê se eles invadem terra sem água, sem benfeitorias, alguma coisa lá
no agreste, coisa nenhuma.
O tio tomou um copo de água que a tia tinha colocado em sua
frente. Ele bebeu devagar, tentando se acalmar. Depois arrumou as folhas de
jornal e se deteve a ler a seção política. Quase teve um ataque.
- Não acredito, não acredito mesmo que o mensalão seja
julgado e que alguém vá para a cadeia. Estão cooptando até o pessoal do
Supremo, vê se pode? Tem gente boa lá, com certeza, mas o que podem fazer com
estes bandidos de colarinho branco? É uma teia de sujeira. E o pior é que o
sistema se autoproteje, e no máximo vai algum pé rapado para o xilindró.
Suspirou enquanto lia o resto das notícias.
- Não acredito realmente em mais nada. É só abrir o jornal
que as notícias ruins pululam como sapos em água fervente. Eu já disse, não
voto mais em ninguém. O candidato pode
até ser bom antes de entrar, depois chafurda na lama do mesmo jeito. É
um escândalo depois do outro. Jogou o
jornal no chão com raiva, estirou-se na cadeira, deu um suspiro grande,
voltou-se para a cozinha:
– Vê um cafezinho aí,
minha velha. E com açúcar, açúcar, mulher, não acredito mais nestes
nutricionistas. Minha diabetes já deu um salto mesmo, deixa para lá, se morrer,
morro doce.
Virou para mim - Cada
mês, chega uma novidade sobre alimentação. Eu, definitivamente não acredito em
mais nada. Um dia ovo faz mal, noutro dia faz bem. A gordura e a carne vermelha
eram as grandes assassinas, hoje são os heróis, desde que sejam boas gorduras,
carnes magras, sei lá mais o quê. No tempo de meu pai, usava-se banha de porco
para cozinhar, açúcar para adoçar, manteiga para passar no pão. Hoje em dia é
um monte de restrição, para mim, tudo golpe da indústria alimentícia e de
medicamentos. Por essas e outras, é que
digo que não acredito em absolutamente nada, meus amigos. Só na morte mesmo,
pois até hoje ninguém conseguiu enganá-la.
Quando chega a hora, o sujeito vai mesmo.
Expliquei para o tio
que estavam congelando cadáveres, esperando a medicina avançar e assim, poderem
ressuscitar. Muito rico estava fazendo
isso.
- É outra coisa em que não acredito, não boto uma fé nisso,
imagine! Acho que é só outra malandragem para tirarem dinheiro destes ricos
idiotas. E ressuscitar para quê? Para tornar a viver estas aflições que a
gente passa todo dia? Não sabe se vai ser assaltado, se os filhos chegam
inteiro ou com vida em casa... Além dos assaltos na folha de pagamento. Sou funcionário aposentado, minha filha. Pois
não é que me descontam a contribuição previdenciária? Paguei quase 40 anos para
poder me aposentar e mesmo assim não foi bastante. O Governo morde minha aposentadoria todo
mês. Agora, veja só, ta aí, no
jornal... Para dar um mísero aumento aos
professores, é uma luta sem fim, precisa greve, muita conversa, e enquanto
isso, as crianças sem aula... Abaixou-se,
procurou nas folhas espalhadas no chão o caderno de economia e continuou
sua lenga-lenga: porém para o pessoal do legislativo, veja que beleza... eles
mesmo se aumentam..., ganham muito mais que o presidente da república, tem
carro, gasolina, passagem de avião para as bases...um monte de mordomias e
nunca ficam satisfeitos...
Olhe, eu lhe digo, na hora que defunto abrir os olhos, não sei o que vou
fazer, já que nem na morte vou acreditar mais... Esta história de congelar
cadáver, quem sabe até isso pode acontecer, então aí é que eu não acredito
em mais nada mesmo..
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