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sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Do lado de lá da Muralha - Suzana da Cunha Lima



Do lado de lá da Muralha
Suzana da Cunha Lima

Cheguei finalmente em casa depois de um dia quente e abafado  onde tudo tinha dado  errado. Joguei os sapatos para um lado, a bolsa para outro, liguei o ventilador de teto e sentei-me na poltrona, totalmente exausta. Ofegava como um cachorrinho cansado e a última coisa que eu queria  era ouvir algum ruído, seja lá de onde viesse.

Mas...meu neto veio lá de dentro do quarto, correndo e animado como só as crianças de seis anos o são. Estava com a mão cheia de lápis de cor e páginas rabiscadas. Estivera a desenhar, imaginei, mal abrindo o olho, ou fazendo gibi, como ele dizia.

- Oi vó, conta uma história para mim?  Vou fazer outro gibi, mas estou sem ideia  - e sentou-se no chão me olhando com aqueles olhinhos irresistíveis, que varreram meu cansaço e desânimo para o lado.

- Bem Carlinhos, faça um Gibi com a história  da vovó de hoje. tá bem?

- Você tem uma história só sua, vó? Que legal! Então conta...

Bom, naquele dia, a avó do Príncipe verificou que a despensa estava quase vazia e não havia chegado ainda nenhum servidor no palácio.

 Aí ela se lembrou da greve das charretes e da peste de catapora.  Seus serviçais, mordomo, aias, camareiras, cozinheiros ou estavam em casa doentes, cheios de pipocas, ou não havia conseguido nem uma carroça para irem ao palácio. Cavalo, só os nobres tinham.

Assim, ela resolveu sair para pagar as contas do palácio e tomar as  providências cabíveis.  

- Vó,  em casa, é o escritório do pai que paga todas as contas.

- Mas o Príncipe não trabalhava, nem tinha escritório, Carlinhos. Ele caçava, limpava suas armas, treinava esgrima e às vezes ia pescar com alguns companheiros. Nem os nobres, nem os padres, nem os soldados trabalhavam. Trabalho era considerado algo servil, das classes baixas.

- Quem trabalhava então? Perguntou o menino espantado.

- Ora, os camponeses que aravam, semeavam e colhiam os grãos da terra.  O moleiro que fazia o pão.  Os pastores que cuidavam das ovelhas, os seleiros, os ferreiros, as tecelãs, muita gente trabalhava naquela época, com as mãos, com habilidade, com ferramentas bem simples.

- E agora, como é?

- Muito, muito diferente, meu querido. Há máquinas para quase tudo e se trabalha mais com a cabeça, com raciocínio, pelos computadores.  E praticamente todo mundo trabalha. Trabalho é algo muito nobre, muito valorizado.

 Mas continuando... a avó do Príncipe se arrumou toda e desceu a escadaria para pegar sua carruagem, e ouviu o relinchar dos cavalos esperando-a. Mas cadê o Cocheiro? Olhou de um lado para o outro, ninguém.

Ah, esta avó era disposta. Pulou para dentro da carruagem, pegou as rédeas e foi embora para a cidade.  Abriram  a porta da muralha para ela passar e ela foi-se encantando com tudo que via.  O campo verdinho lá longe, à sua frente, as ovelhas no pastoreio, e a algazarra de muitas pessoas passando, conversando, mostrando suas mercadorias, pechinchando. As barraquinhas com as verduras, frutas, linguiças, batatas, tudo exposto, esperando compradores.

Desceu da carruagem, e começou a andar por aquelas vielas, observando tudo, muito curiosa do que estava vendo.  Ela nunca tinha saído do palácio, as coisas chegavam às suas mãos. Agora ela estava conhecendo o pessoal que plantava ou cuidava do que a corte comia, vestia ou consumia. Ficou emocionada. Mas, à medida que caminhava por ali, machucando um pouco seus pés delicados naquelas ruas sem calçamento, com buracos e pedras, também viu muita sujeira, muita criança maltrapilha, muita água suja jogada no chão,  Foi aí que ela percebeu pela primeira vez, a enorme diferença entre nobres e trabalhadores.

- E ainda tem isso, vó?

- De certo modo sim, em países muito atrasados. E de outra maneira, em outros lugares. Ainda temos Reis e Príncipes, alguns andam de carruagens, outros de bicicletas, mas o povo está mais amparado. Trabalho, de modo geral é algo valioso, que permite você viver sem depender de ninguém.

Bom, voltando à história, a vó comprou tudo das barraquinhas e distribuiu muito dinheiro para aquele pessoal. Quando voltou para o palácio era outra, cansada, e preocupada com o que tinha visto.

Chamou seu filho, o Príncipe, e disse:

- Você vai ter que mudar muitas coisas por aqui.  Vamos melhorar as casas onde nosso povo mora, remunerar melhor os produtos que eles vendem.  Você vai passear comigo pelas vielas e perceber as necessidades deles.  Não está certo a gente ter tanta coisa e eles pouco ou quase nada.  Somos todos Filhos de Deus, não é o que o Bispo tanto fala? Então todos precisamos ter um teto, comida, roupa para aquecer no inverno.  Você precisava ver as crianças brincando no esgoto, todas esfarrapadas... Não está certo isso não.

O Príncipe olhou para a mãe e ainda tentou falar alguma coisa;

- Mas sempre foi assim, minha mãe. Desde o tempo de meu pai, de meu avô...

- E por que sempre foi assim está certo, meu filho? Está tudo errado.

 E vou lhe dizer uma coisa. Eu sou a Rainha e você o Príncipe. Se não fizer o que estou mandando e direitinho, eu lhe deserdo, e vou governar do jeito que eu acho que deve ser. Está entendido?

- Puxa vó... E o que aconteceu? O príncipe obedeceu à mãe dele?

- Ah Carlinhos, o que eu sei é que houve muitas mudanças naquele reino. A Rainha foi adorada pelo seu povo. Nunca mais ninguém passou fome nem morreu de frio.

Mas sobre o Príncipe, vamos deixar para outra vez, está bem? É uma história longa... A vó queria agora um suco de laranja bem gelado, estou tão cansadinha, meu netinho...



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