Do lado de
lá da Muralha
Suzana da Cunha Lima
Cheguei
finalmente em casa depois de um dia quente e abafado onde tudo tinha
dado errado. Joguei os sapatos para um lado, a bolsa para outro, liguei o
ventilador de teto e sentei-me na poltrona, totalmente exausta. Ofegava como um
cachorrinho cansado e a última coisa que eu queria era ouvir algum ruído,
seja lá de onde viesse.
Mas...meu
neto veio lá de dentro do quarto, correndo e animado como só as crianças de
seis anos o são. Estava com a mão cheia de lápis de cor e páginas rabiscadas.
Estivera a desenhar, imaginei, mal abrindo o olho, ou fazendo gibi, como ele
dizia.
- Oi vó,
conta uma história para mim? Vou fazer outro gibi, mas estou sem ideia -
e sentou-se no chão me olhando com aqueles olhinhos irresistíveis, que varreram
meu cansaço e desânimo para o lado.
- Bem
Carlinhos, faça um Gibi com a história da vovó de hoje. tá bem?
- Você tem
uma história só sua, vó? Que legal! Então conta...
Bom,
naquele dia, a avó do Príncipe verificou que a despensa estava quase vazia e
não havia chegado ainda nenhum servidor no palácio.
Aí ela se lembrou da greve
das charretes e da peste de catapora. Seus serviçais, mordomo, aias,
camareiras, cozinheiros ou estavam em casa doentes, cheios de pipocas, ou não
havia conseguido nem uma carroça para irem ao palácio. Cavalo, só os nobres
tinham.
Assim, ela
resolveu sair para pagar as contas do palácio e tomar as providências
cabíveis.
-
Vó, em casa, é o escritório do pai que paga todas as contas.
- Mas o
Príncipe não trabalhava, nem tinha escritório, Carlinhos. Ele caçava, limpava
suas armas, treinava esgrima e às vezes ia pescar com alguns companheiros. Nem
os nobres, nem os padres, nem os soldados trabalhavam. Trabalho era considerado
algo servil, das classes baixas.
- Quem
trabalhava então? Perguntou o menino espantado.
- Ora, os
camponeses que aravam, semeavam e colhiam os grãos da terra. O moleiro
que fazia o pão. Os pastores que cuidavam das ovelhas, os seleiros, os
ferreiros, as tecelãs, muita gente trabalhava naquela época, com as mãos, com
habilidade, com ferramentas bem simples.
- E agora,
como é?
- Muito,
muito diferente, meu querido. Há máquinas para quase tudo e se trabalha mais
com a cabeça, com raciocínio, pelos computadores. E praticamente todo
mundo trabalha. Trabalho é algo muito nobre, muito valorizado.
Mas
continuando... a avó do Príncipe se arrumou toda e desceu a escadaria para
pegar sua carruagem, e ouviu o relinchar dos cavalos esperando-a. Mas cadê o
Cocheiro? Olhou de um lado para o outro, ninguém.
Ah, esta
avó era disposta. Pulou para dentro da carruagem, pegou as rédeas e foi embora
para a cidade. Abriram a porta da muralha para ela passar e ela
foi-se encantando com tudo que via. O campo verdinho lá longe, à sua
frente, as ovelhas no pastoreio, e a algazarra de muitas pessoas passando,
conversando, mostrando suas mercadorias, pechinchando. As barraquinhas com as
verduras, frutas, linguiças, batatas, tudo exposto, esperando compradores.
Desceu da
carruagem, e começou a andar por aquelas vielas, observando tudo, muito curiosa
do que estava vendo. Ela nunca tinha saído do palácio, as coisas chegavam
às suas mãos. Agora ela estava conhecendo o pessoal que plantava ou cuidava do
que a corte comia, vestia ou consumia. Ficou emocionada. Mas, à medida que
caminhava por ali, machucando um pouco seus pés delicados naquelas ruas sem
calçamento, com buracos e pedras, também viu muita sujeira, muita criança
maltrapilha, muita água suja jogada no chão, Foi aí que ela percebeu pela
primeira vez, a enorme diferença entre nobres e trabalhadores.
- E ainda
tem isso, vó?
- De certo
modo sim, em países muito atrasados. E de outra maneira, em outros lugares.
Ainda temos Reis e Príncipes, alguns andam de carruagens, outros de bicicletas,
mas o povo está mais amparado. Trabalho, de modo geral é algo valioso, que
permite você viver sem depender de ninguém.
Bom,
voltando à história, a vó comprou tudo das barraquinhas e distribuiu muito
dinheiro para aquele pessoal. Quando voltou para o palácio era outra, cansada,
e preocupada com o que tinha visto.
Chamou seu
filho, o Príncipe, e disse:
- Você vai
ter que mudar muitas coisas por aqui. Vamos melhorar as casas onde nosso
povo mora, remunerar melhor os produtos que eles vendem. Você vai passear
comigo pelas vielas e perceber as necessidades deles. Não está certo a
gente ter tanta coisa e eles pouco ou quase nada. Somos todos Filhos de
Deus, não é o que o Bispo tanto fala? Então todos precisamos ter um teto,
comida, roupa para aquecer no inverno. Você precisava ver as crianças
brincando no esgoto, todas esfarrapadas... Não está certo isso não.
O Príncipe
olhou para a mãe e ainda tentou falar alguma coisa;
- Mas
sempre foi assim, minha mãe. Desde o tempo de meu pai, de meu avô...
- E por
que sempre foi assim está certo, meu filho? Está tudo errado.
E vou lhe dizer
uma coisa. Eu sou a Rainha e você o Príncipe. Se não fizer o que estou mandando
e direitinho, eu lhe deserdo, e vou governar do jeito que eu acho que deve ser.
Está entendido?
- Puxa
vó... E o que aconteceu? O príncipe obedeceu à mãe dele?
- Ah
Carlinhos, o que eu sei é que houve muitas mudanças naquele reino. A Rainha foi
adorada pelo seu povo. Nunca mais ninguém passou fome nem morreu de frio.
Mas sobre
o Príncipe, vamos deixar para outra vez, está bem? É uma história longa... A vó
queria agora um suco de laranja bem gelado, estou tão cansadinha, meu
netinho...
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