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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Wagner e as mulheres - Suzana da Cunha Lima






WAGNER E AS MULHERES
Suzana da Cunha Lima

 

Wagner chegou menino em São Paulo, enganchado à saia da mãe que carregava seu irmão pequeno num braço e uma sacola no outro. Nordestina decidida, largara o marido vagabundo para trás e decidira tentar a vida na cidade grande. Só tinha um pedaço de papel com o nome e o endereço de uma prima , e o número do telefone para onde devia ligar logo que chegasse. Tudo isso era grego para uma mulher analfabeta que jamais vira um edifício na vida, quanto mais aquela floresta de cimento que se erguia ameaçadora aos seus olhos. Mas ela não era mulher de se intimidar à-toa.” Quem agüentou o Severino estes anos todos – dizia – não tem medo de mais nada”.

Achegou-se a um policial – gente de farda é autoridade, dizia - e pediu informações com o papel na mão e com a ajuda dele conseguiu falar com a prima. Gastou os últimos trocados num lanche para os meninos e se enfiou num táxi chamado pelo policial para levá-la naquele endereço.

Foi parar numa favela perto do Morumbi, onde a prima tinha um barraco e emprego numa daquelas mansões que se avistava de cima do morro e ali se ajeitaram uns tempos. Aceitou fazer serviços de faxina indicada pela prima, colocou o menino pequeno numa creche e Wagner entrou para a escola. Mas a grande mestra de dele foi a vida na favela. Viu de tudo, aprendeu o que devia e o que não devia, mas não se desviou para o tráfico de drogas como os outros meninos, porque tinha uma mãe severa e atenta e o cinto dançava em suas costas se fizesse besteira. O único desvio foi servir de pombo-correio levando e trazendo mensagens que lhe rendeu um bom dinheirinho. Mas logo que soube a mãe o tirou disso, foi morar num barraco mais distante e arranjou outro homem, que os protegeu por algum tempo.

E ela tratou de encaminhá-lo para pequenos serviços nas casas em que trabalhava. Ele regava jardins, tratava das plantas, lavava carros, engraxava sapatos e de biscates em biscates, acabou sabendo de tudo um pouco. De estudo, só conseguiu terminar a quarta série, suficiente para se virar no mundo e não passar por bobo.

Já rapaz, se enrabichou por uma mulher mais velha e bem esperta, que tirou dele o que podia e ainda o deixou à mercê de um marido truculento e vingativo que quase o matou de pancadas. Foi obrigado a fugir com a roupa do corpo, e amigos o levaram para a rodoviária, com um dinheirinho dado pela mãe e uma sacolinha com seus poucos pertences. O Ônibus ia para o Rio de Janeiro. Ele tinha indicação de serviço num edifício no bairro da Tijuca, onde ele chegou gastando os últimos trocados num táxi.

Conseguiu trabalho e uma vaga num quartinho de um conterrâneo. Era um rapaz de boa figura, falante e sedutor, parecendo de família fina, e acabou se metendo em diversas aventuras, nem todas com final feliz. Numa delas, mais uma vez, teve que fugir correndo, devido à fúria de um marido enganado. Outro emprego perdido. Ainda não tinha se dado conta que sua fraqueza era o fascínio que as mulheres exerciam sobre ele.

Resolveu tentar Copacabana. Logo arranjou trabalho, porque era habilidoso, educado e não rejeitava serviço. De serviços pequenos aqui e ali, como tinha facilidade de fazer amigos, foi lembrado para trabalhar num edifício de luxo, de frente para o mar, como faxineiro do prédio.

Deslumbramento total. Nunca tinha visto tanta mulher bonita, de biquíni, bronzeadas, naquele bamboleio de botar um homem doido. Era como tirar doce de criança, confessou a um amigo. Mas resolveu evitar mulher casada, que era quem mais o assediava, porque já estava cansado de correr para lá e para cá, perdendo emprego e tendo que recomeçar a vida. Resolveu maneirar; já tinha 35 anos, queria um bom emprego,, se fixar em algum lugar e planejar sua vida. Sonhava buscar sua mãe e irmão e constituir família, ter sua casa e seus filhos.

Trabalhava muito bem, sempre solícito e respeitoso, era muito habilidoso e como tinha algum estudo, rapidamente passou a zelador. Com isso, teve direito a um apartamento pequeno e jeitoso no edifício, tíquete refeição, carteira assinada, convênio médico. Um bom salário que servia também para compensar os aborrecimentos do cargo: condôminos sem educação que o chamavam na madrugada para abrir portão, bêbados que precisavam ser carregados, jovens que faziam barulho e outras reclamações nunca imaginadas por ele, partindo de pessoas com posses. “Dinheiro não é tudo, pensava. Lá na favela as pessoas tinham mais consideração umas com as outras”.

Mas é a vida – filosofava – enquanto olhava com o rabo do olho para a morena do quinto andar que sempre piscava para ele, ou para a madame cheia de jóias que lhe pedia discrição quando entrava com um homem que não era o marido. Praticamente ele conhecia todos que moravam ali, com seus segredos e pecados, suas mazelas e até alegrias. As duas mulheres solitárias que dividiam o apartamento do nono andar e viviam brigando por besteiras e lhe chamando como árbitro de suas desavenças. Uma viúva já velhinha que passeava no jardim com seu cachorrinho e sempre pedia sua opinião sobre qualquer coisa ou parava para lhe contar a última gracinha de seu bichinho. Um senhor estrangeiro que falava arrevezado e sempre querendo saber se ia chover ou não. Um casal ainda novo que só abria a boca para reclamar: o elevador que estava sujo, o som alto do vizinho, a impertinência do garoto do primeiro andar. A todos ele atendia com a tolerância e sabedoria que a vida tinha lhe ensinado, sem perder seu bom humor. Percebia bem a solidão dos que viviam sozinhos e se sentiam sós, pois lhe interfonavam toda hora ou lhe dirigiam a palavra por qualquer bobagem, mas era, sabia ele, para amenizar a solidão, saber-se escutado.

Uma noite ele estava cobrindo a folga do porteiro e observou a viuvinha do sexto andar chegar com um rapaz e lhe pedir para abrir o portão porque havia esquecido seu controle remoto. Era contra as normas do edifício. Ela era uma moça de uns 30 anos, bonita e elegante, que trabalhava fora e se mantinha sem ajuda de homem. Ele sempre a admirava muito e também a desejava, mas não tencionava fazer a besteira de a cortejar e acabar perdendo toda aquela regalia. Naquele momento, no entanto, como era observador, sentiu aflição nos seus olhos. O que estaria havendo? Quem era aquele sujeito mal encarado a seu lado?

A contragosto ele abriu o portão, mas ficou na cabine observando o comportamento do acompanhante da moça.

Achou um tipo suspeito e grosseiro e resolveu verificar. Pediu ao segurança para ficar um pouco na portaria enquanto ele seguia o casal. Sabia que ela morava no terceiro andar, subiu pelas escadas e chegou antes deles. Escondido na porta que dava para a escada, observou-os sair do elevador e percebeu que o homem tinha algo encostado na costela da moça e obrigou-a a abrir o apartamento e entraram. Neste meio tempo, Wagner resolveu chamar a polícia pelo celular. Aquele sujeito era claramente um malfeitor, um assaltante ou algo pior. Não ia esperar a polícia chegar. Não tinha nenhum plano ainda na cabeça, mas conhecia o crime e os malfeitores e já tinha escapado de muitas pela rapidez de raciocínio e capacidade de se sair bem em situações difíceis.

Havia um interfone em cada andar, no hall das escadas. Resolveu ligar para o apartamento de moça. Precisou tocar muitas vezes até alguém responder. Respondeu uma voz de homem, impaciente e grosseiro:

- Quem é, a esta hora?

- É o porteiro, senhor. Tem uma encomenda para d.Lúcia aqui na portaria e só entregam se ela mesma vier receber. Ela pode atender?

- Encomenda? A esta hora? – respondeu o homem já irado – não estamos esperando nada. Mande o homem embora e não nos amole mais.

- Senhor, o homem insiste para d. Lúcia vir receber. Parece coisa do estrangeiro, pelo selo e carimbos. Coisa importante, de valor. Ele diz que vai armar o maior escândalo se d. Lúcia não vier logo. Será que ela sabe do que se trata?

- A moça já disse que não sabe o que é. Mande o entregador ir embora e não nos aborreça mais senão chamo a polícia.

- Já foi chamada a polícia senhor, porque ele está aos gritos aqui embaixo, completamente fora de si e os condôminos começaram a reclamar.

- Polícia, é? – Wagner sentiu o homem hesitar um pouco. - Pois diga a polícia para prender este cretino que está perturbando a ordem. Não é para isso que ela serve?

- Tem razão senhor, mas sabe como a polícia é. Vai querer falar com d.Lúcia. A encomenda é para ela. Ela não poderia vir aqui embaixo para resolvermos isso?

- Ora, vá para aquele lugar, seu incompetente. Não temos nada a ver com isso, muito menos com um maluco que resolve encher o saco dos outros a esta hora da noite. E não me interfone mais!

- Bem, a polícia está subindo, senhor. O senhor se entende com ela aí.

Wagner sentiu o interfone ser desligado com fúria e ficou esperando que o homem abrisse a porta e tentasse fugir pela escada, exatamente onde ele estava, perto do interfone. Ouviu a porta se abrindo e o ruído de pés apressados no hall. Logo a porta do hall da escada abriu-se e Wagner fechou-a sobre ele, fazendo-o despencar pela escada.

Surpreso, o homem foi rolando aos berros, e deixou a arma cair num degrau. Wagner pegou-a rapidamente e rendeu o sujeito, que estava meio inconsciente, no primeiro patamar. Ligou pelo seu celular para a portaria, avisando que tinha chamado a polícia e estava no terceiro andar com o suspeito. D. Lúcia abriu a porta do apartamento e foi até à escada para ver o que tinha ocorrido, tentando tirar uma fita crepe da boca. Começou a chorar ao ver Wagner com a arma apontada para o bandido, machucado e furioso, sentado no patamar, sem saber bem porque estava ali, rendido com seu próprio revolver, por aquele nordestino debochado.

- Ele entrou no meu carro no sinal da pracinha e me fez entrar no prédio, sr. Wagner. Ainda bem que o senhor percebeu que tinha alguma coisa errada. Este cara trabalha na quitanda e sempre está me dando cantadas grosseiras. Não sei o que ele queria, se roubar ou me estuprar. Quando o senhor interfonou eu disse para ele que se eu não atendesse, o senhor ia subir para ver o que tinha ocorrido. Graças a Deus o senhor chegou a tempo: ele me colocou esta fita na boca e me jogou no sofá. Nem sei o que podia ter ocorrido. O senhor chamou mesmo a polícia?

-Chamei sim, quando vi vocês dois saindo do elevador e ele parecia ter uma arma na sua costela.

- Era uma arma mesmo. Céus, o homem é louco mesmo... Ah, obrigada, Wagner, você salvou minha vida - e d. Lúcia, chorosa, abraçou-se com Wagner.

- Ai meu Deus – pensou ele – Que cabelo cheiroso. Que bom que não tem marido e é tão gostosa... Parece tão carente e frágil...Ai, meu Deus, vai começar tudo outra vez....



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