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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Apenas uma lembrança - Suzana Lima



APENAS UMA LEMBRANÇA
Suzana Lima
 
Eliane tinha feito 18 anos dois dias atrás, mas a comemoração se dera naquele sábado. Com tudo a que tinha direito: buffet caprichado, DJ e flores, família em peso, muitos amigos, risos e brincadeiras e muita, muita alegria. A música se derramava pelo salão e jardins e até a natureza resolveu brindá-la com uma noite excepcionalmente bela, ainda mais que o clube ficava na Lagoa Rodrigues de Freitas, que dispensa qualquer adjetivo, principalmente banhada pelo luar.

Eliane estava no céu. O namorado a pedira em casamento e selado o compromisso com o beijo mais cinematográfico que ela já tivera. E isso tudo ao som da música deles: Minha Namorada, de Vinicius e Carlinhos Lyra.

De manhã, os pais já a haviam surpreendido com um Corsa novinho em folha e ela tinha acabado de se matricular na Faculdade que queria cursar. Tudo mais que perfeito.

Pediu para voltar sozinha no seu carro novo, para curti-lo e desfrutar daquele momento só seu. Morava a duas quadras dali, guiava bem, os pais concordaram.

Ela nem viu quando o motorista bêbado que vinha na contra-mão, a atropelou violentamente. Ficou viva por milagre, porque foi socorrida com rapidez e era jovem.

Os pais, namorado e amigos purgaram os quinze dias que ela passou entre a vida e a morte, entre a dor e a revolta, pelo acidente tão estúpido num dia de tanta festa.

Com 15 dias ela conseguiu abrir seus olhos e enxergar um mundo e pessoas como jamais tinha visto: sem se lembrar de nada nem de ninguém. Seu centro cognitivo fôra severamente afetado e nem mesmo recordava seu próprio nome. Os médicos não deram muita esperança, mas assim mesmo, todos se revezavam à sua cabeceira, tentando colocar suas memórias de volta, na sua cabeça vazia.

Aos poucos ela foi reconhecendo seus pais, amigos e algumas pessoas mais assíduas, simplesmente porque elas se autodenominavam e Eliane gravava a imagem junto ao nome.

Havia também um rapaz bonito e sorridente que sempre lhe visitava, beijava suas mãos e lhe levava flores. Ele tocava seu coração de tal maneira que ela instintivamente deduziu que devia haver alguma ligação forte entre os dois, mesmo desconhecendo por completo seu nome e o grau de relacionamento com ela. Tomou este fato como um desafio e pediu que ninguém lhe informasse nada sobre ele. Queria descobrir por si mesma, pela força e tenacidade de seu pensamento.

Eliane voltou para casa com um batalhão de profissionais atrás, todos se esforçando para devolver sua vida, tal como era. Ela se sentia como um bebê que precisa aprender tudo: a comer, beber, se sentar e andar, fazer suas necessidades sozinha, e se direcionar na casa.

Meses se passaram e Eliane fazia o progresso possível. Se uma pessoa nova aparecia, tinha que se apresentar e dar referências para que ela gravasse seu rosto e nome. Vivências antigas não lhe vinham à cabeça espontaneamente. Não poderia mais cursar a Faculdade, porque tinha perdido todo seu referencial de estudos anteriores. Isso a desanimava às vezes, porque sabia que havia um enorme caminho a percorrer. Era uma criança brincando com as letras e os números, e mesmo canhestramente, tentando apreender o sentido das coisas. Mas ela era determinada e tinha o especial desafio de descobrir sozinha, quem era o moço que nunca deixava de visitá-la.

Um dia ela estava sentada em seu terraço, de onde se avistava a estátua do Cristo Redentor, já iluminada. O sol estava se pondo e o céu parecia um turbilhão de cores incendiadas. Uma dessas tardes que a gente tem vontade de apreciar de joelhos e rezar. Ela deixou o livro que tentava ler e seu olhar passeou pelo morro do Corcovado, o verde da mata e se alongou até as palmeiras do Jardim Botânico, que farfalhavam à brisa leve. Sentiu lágrimas correndo pelo seu rosto diante de tanta beleza e alegrou-se porque tinha conservado intacto seu poder de se emocionar.

Foi quando ouviu uma música tocando ali perto, alguém colocara um cd no seu aparelho de som.
Mas se em vez de minha namorada

Você quer ser minha amada

Mas amada pra valer

Aquela amada

Pelo amor predestinada

Sem a qual a vida é nada

Sem a qual se quer morrer
Olhou para trás, quase assustada, e viu seu assíduo e bonito visitante se aproximar dela cantarolando aquela canção, e começou a sentir seu coração bater loucamente.

Ele se ajoelhou aos seus pés, deixou o ramalhete de flores no chão, beijou suas mãos e sussurrou, sorrindo para ela:

 

- Oi minha flor, ainda quer se casar comigo?

 

E não se sabe até hoje se foi o tom de sua voz ou o toque de suas mãos, ou a própria música que era tão deles que, naquele momento, pareceu a Eliane que estava simplesmente acordando de um sonho mau. Reconheceu imediatamente o homem que amava, como se ainda estivessem na noite de seu aniversário e nada daquilo tivesse acontecido.
- Mário, é você, meu amor? Quero casar contigo sim, claro que quero.

E enquanto se beijavam, rindo e chorando, Eliane sentiu suas memórias irromperem aos borbotões, tal como as lavas de um vulcão em erupção, inundando sua mente e seu coração do que se chama vida.

E o mundo começou a ter sentido outra vez.

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