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quarta-feira, 8 de junho de 2011

O PREÇO DA HONRA - Suzana Lima



O PREÇO DA HONRA
Suzana Lima


Depois que achou a carteira com tanto dinheiro e viu os cartões que provavam que ela pertencia ao seu amigo Gustavo, Honório ficou como preso a um pêndulo: ora tendia para o lado de seus escrúpulos, que o levavam a devolver a carteira com todo seu conteúdo, ora pendia para o lado da esperteza: afinal tinha achado e não roubado e aquela dinheirama toda viria bem a calhar para liquidar o montante de suas dívidas.

Tentava enganar a si mesmo raciocinando que Gustavo era muito rico, não tinha família, e o dinheiro não ia lhe fazer falta enquanto que para ele, era a salvação de sua vida.

Andou um pouco até a praia do Flamengo e lá se sentou, observando o vaivém do mar, assemelhado a si próprio naquela hora. Devolvo? Não devolvo? No fim, seu bom caráter prevaleceu, tanto quanto o senso de amizade e resolveu que ia devolver. Pensaria depois num jeito para pagar o que devia.

Abriu a carteira mais uma vez, como a se despedir daquele verdadeiro bilhete premiado que ia dispensar. Couro legítimo, provavelmente importada, com o monograma do amigo, em prata: AG – Augusto Gustavo. Nem se lembrava que o primeiro nome de Gustavo era Augusto.

As cédulas dentro estavam bem organizadas, das menores para as maiores. Observou melhor os cartões de visita do amigo: elegantes, excelente papel, o nome de Gustavo escrito em relevo. Coisa fina. Também encontrou outros de amigos e clientes. Gustavo era bem relacionado e sabia manter suas amizades e contatos. Só então notou, lá no fundo, uns papéis bem dobradinhos. Desdobrou-os, curioso, porque se lembrou que Gustavo gostava de guardar tudo: nome de médico, dentista, tabacaria que tinha um bom charuto, onde se encontrar um bom vinho, um restaurante que tinha gostado, e muitas dicas para cavalos, ele era freqüentador assíduo do Jockey Clube. Honório lia e dobrava do mesmo jeito, pretendia devolver tudo direitinho, sem que o amigo percebesse sua intromissão.

Nisso que dobrava e desdobrava os papéis notou um de textura diferente, e cor-de-rosa. Ah, deve ser de mulher, pensou, safadinho o Gustavo, nunca comentava sua vida amorosa. Tinham sido amigos de farra até Honório se casar, mas daí por diante, o amigo fechava-se em copas, nem mesmo provocado fazia alguma confidência.

Por isso mesmo, Honório deixou suas reservas de lado, afinal, o que ia fazer era uma invasão de privacidade , mas a curiosidade foi mais forte e resolveu ler o bilhete. Abriu devagar, deliciado com a travessura e mais ainda por desvendar segredos do amigo. Sentiu logo um doce perfume enquanto reparava na bela letra, de mulher, se via, pelo capricho, que na hora lhe lembrou algo (talvez as aulas de caligrafia?)

Começou a ler, e aos poucos, seu sorriso maroto foi-se transformando num esgar de fúria. Reconheceu a letra e assinatura de sua mulher e o conteúdo parecia ferro em brasa queimando seu coração. Da raiva foi à autocomiseração, daí para a amargura e sentimentos de vingança. Suava, embora o tempo estivesse frio.

Era por isso que o miserável não saía de sua casa. A mulher geralmente dispensava a empregada às tardes, com recados e tarefas fora de casa, certamente para ficarem a sós e bem à vontade. Sempre ouvia risadinhas e olhares cúmplices entre os dois, mas jamais pensaria que estivesse sendo traído em seu próprio lar.

Sua mulher sempre justificava a presença constante de Gustavo em sua casa, dizendo que ele se sentia muito só, era filho único e a mãe tinha morrido recentemente e gostava do ambiente do lar dos dois, afinal eram amigos há muito tempo!... Era o cúmulo!

Começou a pensar o que faria. Foi do homicídio à tortura, da difamação pública à indiferença, mas a vingança estava ali presente, em todas as suas formas.

E se eles pensarem que eu não li nada? E se eu chegar botando a boca no mundo e exigindo satisfação? O que faço para castigar estes dois?

Não tornou a guardar o bilhete na carteira. Guardou-o no bolso do casaco e se encaminhou para a casa andando de um jeito que parecia carregar uma tonelada nas costas. Já no portão ouviu a conversa sussurrada dos dois. Cortinas fechadas, embora o dia estivesse claro. Pequenos detalhes que sempre lhe passaram despercebidos e que agora, tinham um significado terrível para sua honra.

Entrou sem fazer barulho, mas a chave na porta denunciou sua chegada. Viu os dois se ajeitando no sofá, disfarçando a proximidade. Cumprimentou-os disfarçando a raiva e foi logo ao assunto, enquanto se sentava em sua cadeira.

- Gustavo, você não perdeu nada?

- Minha carteira, Honório. Estava agora mesmo perguntando a Amélia se eu não a tinha esquecido aqui, estávamos até procurando entre as almofadas do sofá, quando você chegou.

- Ah, sei – pensou Honório - Bem, eu a encontrei lá no Largo da Carioca, no chão, quase passo por ela sem ver. Tive que abri-la para ver de quem era. Você é tão organizado que jamais pensei que fosse perder uma carteira e tão longe de sua casa. Estava preocupado com alguma coisa?

- Imagine, Honório, está tudo bem. Deve ter sido enquanto fazia um jogo com os boomakers lá do Largo da Carioca. Ainda bem que você achou. Ganhei muito dinheiro com os cavalos.

Honório entregou a carteira ao amigo sem o bilhete do amor, mas com todo o dinheiro.

- Bom, aqui está ela, inclusive o dinheiro. Vou lavar as mãos para o jantar – falou e saiu da sala. - Por uma fresta viu os dois procurando algo dentro da carteira. Quando voltou, notou a aflição nos olhos de sua mulher e o constrangimento em seu amigo.

- Está tudo aí, não? Perguntou - Só abri para ver de quem era e notei que tinha bastante dinheiro. Sou pobre, mas tenho caráter e não sou ladrão.

- Claro, Horácio, você sempre foi muito correto. Está tudo aqui, obrigada. – Gustavo não sabia como se comportar, inquieto e inseguro com a aparente fleugma do amigo. Ele teria lido o bilhete?

Amélia, disfarçando a aflição, pediu licença para ir à cozinha ver o jantar.

Honório acendeu seu cachimbo com calma, o coração se petrificando diante de tanta desfaçatez. E olhando para o amigo falou com fingida displlicência:

- Bem caro amigo, acho que vou aceitar aquele dinheiro que me ofereceu. Estava constrangido mas vejo que não vai lhe fazer falta os 700 mil que lhe pedi. Quem anda com isso numa carteira para lá e para cá, é porque tem muito mais de onde veio.

- Verdade, Horácio, é das corridas. Assim como vem, vai. Então aceite tudo isso, por favor, sei que tem dívidas a pagar. - Deu-lhe todo o dinheiro que estava na carteira, levantou-se e pegou o casaco. – Não vou ficar para o jantar, agradeço, mas tenho um compromisso inadiável.

- Ah, espere um pouquinho Gustavo. Vou aceitar o dinheiro sim, mas precisamos conversar sobre uma quantia fixa por mês, não acha?

Gustavo estacou na porta, estarrecido:

- Uma quantia por mês, Horácio?

- Claro Gustavo. Isso não vai ficar barato. Vamos ter muita despesa daqui para a frente. Amélia é uma mulher cara, gosta de luxo. A menos que vocês dois queiram assumir isso tudo em sua própria casa. Fica a critério de vocês, mas sabe como é, o escândalo, seu trabalho ia ficar bem prejudicado, não é? E ela, então? Nossa sociedade é muito conservadora, o pessoal já gosta de falar, o que seus clientes iam dizer, não é?

.- Você estipula uma quantia, Horácio – falou Gustavo, como se estivesse engolindo veneno. - Combine com Amélia, o que resolverem está bom para mim. – e saiu com pressa, sem olhar para trás. - Horácio continuou sentado na cadeira, olhar distante.

Amélia ia chegando à mesa, com as travessas do jantar, de olhar baixo. Horácio olhou sua mulher, tão bela e tão tola, pensou. Jogou meu amor no lixo, como se joga roupa velha. Sabia que ia espezinhá-la e sabia também que ia sofrer com isso porque a amava ainda, mas não voltou atrás em seu propósito.

- Você ouviu isso, Amélia? Gustavo não vai jantar mais conosco. Nem hoje, nem nunca. - tirou o bilhete do bolso:

- Correspondência interessante esta... Quer ouvir?

E aí Horácio leu o bilhete rosa outra vez, pausadamente, como se estivesse mastigando vidro.



Meu amor querido.

Sei que ontem você ficou abalado com a notícia que lhe dei, mas não precisa se preocupar. Sou casada, nada mais natural que isso aconteça num casamento, não é? Sei que Horácio vai ficar encantado e toda minha família também.

Nada vai mudar entre nós. Meu amor por você continua imenso, cada dia maior, ainda mais que agora espero um filho seu. Eu estou especialmente feliz porque agora vou ter um pedacinho seu dentro de mim, não posso imaginar coisa melhor para coroar nosso amor.

Meu querido Gus, sua para sempre

Beijos queridos

Amélia

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