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segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O relógio sabia de tudo - Ana Maria





O relógio sabia de tudo
Ana Maria Maruggi

A porta bateu com urgência à saída de Gustavo, que na pressa deixou esquecida a carteira sobre a cama de Amélia. Ela aflita escafedeu-se para banhar-se e perfumar o corpo com intuito de esconder o que se passara há pouco. O relógio atônito agoniava de ver tanta correria de todos quando ia dando seis da tarde. Tinha presenciado o jovem Gustavo vestir-se ligeiro para sair antes que o marido de sua amante adentrasse. Viu também que a mulher, pivô de toda a situação, estava aliviada depois do banho, e não sentia culpa pelo acontecido. O relógio expulsou o marido para casa, pois não queria vê-lo atrasar-se para receber os carinhos da esposa infiel.

A carteira lá estava descansando abandonada sobre o traiçoeiro colchão de lençóis bem alinhados sob a colcha branca. Uma carteira marrom em couro macio que estufava de dinheiro, cartões e bilhetes reveladores.

Gustavo não percebeu. Amélia não viu. O relógio sabia de tudo.

Nas seis badaladas do carrilhão da sala, entrou o marido traído sorrindo e chamando pelo nome da esposa traidora. Nas mãos ele trazia um presente embalado em pequena caixa brilhante. Ela deixou-se conduzir esbelta até o marido, tocou-lhe com os lábios recém-pintados, e demonstrou alegria pelo presente que recebia. Estancou ao ouvir o pedido do esposo: abra apenas no dia de seu aniversário – sussurrou ele para ela. Talvez não conseguisse esperar tanto, mas tentaria. Sabia que há muito o marido queria lhe dar um par de brincos brancos vindos da África, mas a falta de dinheiro o impedira.


Preguiçosa a carteira esperava estufada sobre o leito. Estava cheia de dinheiro que o marido traído precisava para pagar as contas da esposa infiel. Ele entrou cantarolando no cômodo e deu com a estranha carteira toda marrom e sedutora sobre sua cama. Engasgou de ódio. Abriu-a rapidamente antes de dizer qualquer coisa, certificou-se de seu proprietário, e espantou-se quieto com tanto dinheiro. Primeiro praguejou. Depois sorriu. Guardou-a em lugar seguro. Calou-se. O relógio finalmente poderia badalar tranquilamente sem medo de ruidar. 

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