O MENINO QUE NÃO BRINCAVA
Cida Bianchini
Éramos mais ou menos doze crianças a encher a casa de bagunça, numa gritaria sem fim, certamente o tédio dos nonos que buscavam o silêncio, em seus contritos corações.
Assim eram as tardes ensolaradas da minha infância. Espaço não faltava. A casa grande da fazenda, mais parecia um hotel, não só pelo tamanho, mas pela circulação de gente!
Cercada de árvores floridas na primavera, e imenso pomar com grande variedade de saborosas frutas.
O rio, com uma praia de areia branca, era mais uma opção, depois de muito correr nas diversas brincadeiras.
Meus irmãos, meus primos e os filhos dos empregados que, apesar de morarem distante de casa, não faltava disposição para irem ao nosso encontro.
Minha prima Ofélia, era a mais “pata choca”, assim apelidada pela falta de agilidade.
Pedrinho, o filho do oleiro, era o mais ágil de todos. Quando ele se aproximava todos gritavam: “Devagar Serelepe. Qualquer dia você vai se dar mal!”
Nininha, sua irmã, era calma e a mais bela de todas. Olhos grandes, azuis, cabelos que de tão loiros, brilhavam no sol com esplendor.
Neguinho era o inverso. De tão negro também irradiava certa luz, debaixo do quente sol de verão. Rosto suado, cabelos pixaim, sempre ostentava um rasgo em seu short ou em sua camiseta. Pés descalços, pois, ninguém andava calçado.
Neguinho era apático. Nunca quis brincar... Acompanhava de longe as brincadeiras. Sorria pouco, era de uma introspecção a toda prova, levando-o a uma incontida timidez. Ninguém sabia o porquê! Todas as crianças já haviam se aproximado dele para descobrir o motivo de ser tão arredio! Era inútil questionar...
Às vezes torcia os dedos das mãos, deixando que eles falassem...E, raramente não controlava a lágrima que escorria transparente na negra pele.
Todos porem, sabiam que Neguinho era o primeiro aluno da classe. Aprendia a lição com tanta facilidade que nem mesmo os professores entendiam. Hoje vejo que tais características são próprias de uma criança super-dotada.
Havia certa disciplina para as brincadeiras. O brinquedo era escolhido por votos. Colocava-se uma dezena de opções e com o braço erguido, chegava-se ao escolhido. Quando o número de meninas era maior, com certeza elas dominavam. Imensa roda, numa cantoria afinada, deixavam os meninos com inveja, ao se manterem sentados à distancia, participavam em silêncio.
Quando o número de meninos era maior, as meninas não tinham vez! O clube do Bolinha, não permitia a presença feminina. Eram jogos mais violentos, perigosos para a fragilidade feminina.
Na corrida dentro do saco eu era imbatível! Gritava com voz de taquara rachada, irritando a todos: ” Eu sou a força! Eu ganhei... Mais uma vez!”
Na corrida do Pula-Pau, ah, Tuca era sempre o ganhador...
Na amarelinha, sem dúvida o destaque era a Deca...
Boca de Forno...., todos eram destaques
Perna de Pau, o Duda era imbatível.
Só havia uma coisa em comum; a gula. Na hora que o cheirinho do café exalava, as brincadeiras ficavam para trás. Era um corre-corre, onde atropelavam-se sem tomar conhecimento. Sabiam que junto ao café a mesa era farta. Pão-doce, goiabada, bolo, biscoitos de polvilho, enfim, era uma festa...
Nossas tardes nem sempre acabavam bem. Certa vez, a gritaria era tanta que, meu nono, como bom napolitano, não suportou o estresse. Apesar do problema nas pernas que o impedia de correr, pegou o chicote de couro e tentou em passos largos nos alcançar. Demos várias voltas em torno da casa e ao encontrá-lo eu gritava fazendo careta: “Nonno, você não me pega”...
De repente, ele não suportou. Caiu por terra semi desmaiado. Todas as crianças se evadiram e eu me desesperei. Deitei sobre seu peito, abraçando-o forte pedi perdão. Neguinho se aproximou com um copo de água fresca, levantando sua cabeça forçou-o a tomá-la, e foi o que o reanimou. Chorei muito abraçada ao meu nono e percebi o quanto o amava.
Depois deste episódio, eu passei a liderar o grupo.
Tudo foi muito diferente. Entre as brincadeiras, passamos a ter a sessão de civismo. Aos poucos, foi crescendo até transformar-se numa verdadeira aula. Semanalmente eram distribuídos os grupos, com a respectiva agenda e o assunto.
Os grupos se reuniam para a pesquisa e preparação. A exposição era feita em grupo de três crianças.
Lentamente a brincadeira foi dando espaço à pesquisa e consequentemente o interesse ao estudo cresceu, para espanto dos professores.
A paz passou a reinar naquela casa para a felicidade dos nonos. Contudo as brincadeiras não cessaram. Apenas foi mudado o jeito de brincar.
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