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quarta-feira, 9 de junho de 2010

TENERÁ - Lilia


TENERÁ
Lilia 




É ele! É ele! A criançada, enlouquecida, entre o prazer e a euforia. Nem bem escutam aquele barulho se arrastando pelos paralelepípedos, mais os latidos dos cães e, correm às casas para abrir os armários – as empregadas que não se descuidem – em busca de panelas, frigideiras, caçarolas, espumadeiras de alumínio para acrescentar às que o andarilho recolhe em suas andanças; traze-as amarradas à cintura junto com as cordas dos cachorros, eles estridentes cumprimentam as crianças, cidadãos e concidadãos daquelas terras capixabas.



É ele, o Tenerá, repete o povo da cidade. Percorria o Estado de ponta a ponta e agora apontava na rua do norte pelos trilhos do trem, calçando sapatos que tiveram o seu dia, paletó branco sobre a camisa encardida e calcas rotas. Claro de pele, de olhos, menos os dentes, barba rala, cabelos escuros, exibia um sorriso meio triste, meio sarcástico, como se confessasse ou escondesse um segredo. Singular.



Tenerá de olhos distantes, frios, ciosos. Não sei se Rubem Braga se referiu a ele, em alguma ocasião, mas para aquela gente era um mito folclórico! A cidade não existiria sem ele, abandonam seus afazeres para vê-lo passar.



E ele? Simplesmente atravessa a cidade uma vez por ano, sempre no inverno sem parar, sem olhar a não ser para a frente. Diante de uma zombaria, ou comentário maldoso, murmura, o bastante para ser ouvido, “deixai ladrar os cães”. Sua filosofia aumenta-lhe o encanto, o fetiche. Naquele dia o circo não se arriscava a desfilar, para que, se o palhaço, o malabarista, a mulher aranha, todos eclipsados?



Outro inverno e mais outro e outro, sempre o Tenerá acompanhando as crianças crescerem - as recém chegadas já no clima – vendo os moços ficarem velhos e os velhos indo embora.



Porém, naquele ano ele não apareceu, nem no seguinte. As localidades vizinhas indagadas, nenhuma resposta, pediu-se ajuda às autoridades. Em vão. Ele desaparecera da face da terra.



Sem o seu mito a cidade foi indo à falência: ninguém na praça, ninguém na reza, ninguém no bar.



Algum tempo depois um indivíduo exangue, com as feições irreconhecíveis, foi encontrado à boca de certo túnel da ferrovia. Socorrido, no hospital durou poucas horas e suas derradeiras palavras, quase num murmúrio: “Deixai ladrar os cães”.






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