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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O menino que não brincava - Lilia Carvalho



O menino que não brincava – Lilia Carvalho

O cheirinho atravessava a sala, o jardim, ia até a calçada. Cheiro de bolo de fubá que só a Ana Pé de Boi sabia fazer. E o odor era de tal forma apetitoso, que os que passavam aspiravam-no gulosos, até os cachorros recusavam-se a seguir.

Na manhã gelada de junho, p’ra esquentar, a criançada corria p’ra lá e p’ra cá a procura de algo constante da brincadeira. De vez em quando vinha ansiosa a pergunta, aflita, “to frio, ou tô quente?” “Tá esquentando, vai, vai” respondia a coordenadora e, finalmente diante do misterioso achado, explodia do fundo da alma, o grito glorioso: “chicotinho queimado!”.

A avenida animada por aquele fragor de infância contagiava vizinhos e vizinhos, que se entregavam exuberantes.

Só Waldinho não brincava. Cabisbaixo, com os cachos castanhos sobre a testa clara e magra, olhava, impassível, os dedos entrelaçados nos joelhos.

Nem um monossílabo lhe era arrancado, nem uma resposta aos convites para a folia. A meninada puxava-o para animá-lo, inútil. Aquele universo denso a ninguém era dado deflorar. Suas pupilas – verdes ou azuis – tão bem escondidas, só por milagre conseguir decifrá-las.

Desde que a mãe doente viera para a casa dos primos – os filhos acompanharam-na – deixara p’ra trás, lá no morro do céu, sua vitalidade, sua loquacidade, sua felicidade.

Nada lhe lhe apetecia, nem ajudar o primo armar a arapuca p’ro curió que, por perto, ameaça arrebentar os pulmões com seu trinado.

- Venha Waldinho, olha ele está chegando!

- Eu quero a minha mãe sarada.

- Ela vai sarar, Deus é grande! - ouvia o menino, enquanto os cabelos recebiam o carinho, a solidariedade. Mas, ele não abandonava seu posto de desencanto.

De repente o curió, até então indeciso à porta da arapuca, entra não entra, atraído pelo cheiro das frutas, pára pensativo, olha em derredor e voa em direção ao menino. Pousa-lhe na cabeça e começa a beliscar seus cachos castanhos. O garoto tristonho tenta afugentá-lo, mas o passarinho insiste na brincadeira até que consegue um sorriso de Waldinho.

Despede-se com um trinado mais forte para, na manhã seguinte, voltar. E assim vários dias.

O menino já sentia saudade quando ele demorava, e aos poucos ia lhe devolvendo o carinho, oferecendo-lhe o dedo para pousar. Ao final de uma semana e meia saíram para um passeio, o curió pulando de galho em galho, e o menino no seu encalço.

O garoto cresceu, o curió envelhecendo enquanto passava para o amigo a lição que recebera do poeta: “tudo vale ‘a pena, quando a alma não é pequena”.

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